domingo, 24 de julho de 2011

A GALINHA PEDREZ

A GALINHA PEDREZ
A busca da segurança é uma ilusão permanente. A solução deste dilema está na sabedoria da insegurança ou da incerteza. Na realidade a busca da segurança é um apego ao conhecido, àquilo que já vivemos, que já experimentamos e o conhecido nada mais é que o nosso passado. O bom ou o mau passado, isto não importa. Se vivermos apenas do conhecido estaremos regredindo, estaremos cometendo uma tragédia em vista de que o conhecido nada mais é do que a prisão de velhos condicionamentos. Não existe evolução no conhecido, porque ele já foi revelado e será apenas a estagnação e pode gerar desordem. Acredito piamente que a incerteza do que fazer, que o sufoco que muitas vezes enfrentamos é um terreno fértil para a criatividade.
Por estas e outras eu vivo o presente na expectativa da incerteza do depois no alegre cenário do antes que faço repetir muitas e muitas vezes.
Kierkegaard escreveu: A vida só pode ser compreendida olhando-se para trás, mas só pode ser vivida olhando-se adiante.
Eu gosto de reviver as cenas de quando era criança para me divertir e muitas vezes para refletir. Vou até lá e assim tal qual criança sapeca crio e recrio, invento e reinvento, pinto e repinto com o poder de minha mente.
Se me permitem vou levar vocês até o meu primeiro dia de aula.
Minha mãe teve o cuidado de confeccionar o jaleco branco e o embornal para acondicionar caderno, lápis, borracha e o livro Cartilha Sodré.
Antes de sair para a minha aventura radical de buscar conhecimentos além das quatro paredes de casa, minha mãe deu uma bela olhada nas minhas unhas e nas minhas orelhas, penteou meu cabelo e me deu a sua preciosa benção.
Naquele momento eu era o orgulho da família, estava ingressando na escola primária. Por certo meu pai contou para seus colegas de trabalho, deve ter escrito uma carta para seu pai dizendo que seu neto era um cara de grande sucesso. Minha mãe deve ter ido às vizinhas para contar a grande novidade. Ela deve ter rezado algumas ave-marias para pedir proteção a virgem santíssima, pois seu filho estaria, a partir de agora no meio de gente estranha.
Eu fui todo paramentado para escola, feliz e orgulhoso, mas angustiado pelo desconhecido que estaria enfrentando a partir daquele momento.
Quase chegando à escola ainda estava na lembrança o insistente tchau que minha mãe dava e as lágrimas que vi correr pela sua face.
Chamaram pelo meu nome e indicaram a sala. Tremi nas pernas ao entrar nela.
Minha primeira vez foi cruel e sufocante.
Era uma sala provisória, pequena e de poucos alunos. Sentei-me na fila da direita e era o terceiro da frente para o fundo.
A professora entrou, ficamos de pé e eu gelado, angustiado, de goela seca parecendo boi assustado na fila do matadouro.
Aqueles poucos colegas de sala se agilizavam, cumpriam as ordens da professora sem pestanejar e eu feito um bocó, perdido queria somente um buraco para sumir.
A professora deu a ordem da leitura. Cada aluno deveria levantar e ler um trecho. Começou desastradamente exatamente pela minha fila. O primeiro da fila levantou, empunhou o livro a sua frente e começou a leitura da tal galinha pedrez. Achei bonita e engraçada a história que ele lia. Terminou a leitura e a professora ordenou que o da minha frente fizesse o mesmo. Ele leu o mesmo trecho. Estava chegando a minha vez. Só não urinei nas calças porque me segurei ou talvez a urina tenha saído pelos meus poros, pois suava feito um lazarento.
O moleque da frente terminou a leitura e a professora falou qualquer coisa que não entendi e ordenou que eu iniciasse a leitura.
Peguei o livro, abri-o na página adequada com a ajuda do colega da frente e com muito custo me coloquei de pe. Só entendia das figuras isto porque não era cego, mas das letras... nada disto ainda tinha sido apresentado para mim.
O sufoco, a angustia acaba sempre criando em nós um dispositivo de defesa.
Com certeza toda aquela criançada estava passando pelo mesmo sufoco que eu e, no entanto estavam ali realizando as suas tarefas normalmente. Eram criativas e por que não eu. Investi-me de uma segurança inabalável, de uma fortaleza inacreditável e me coloquei a ler. Na realidade comecei a repetir com desenvoltura, teatralmente exatamente o que os outros dois tinham lido. Imitando os dois meus colegas fiz até as entonações de voz.
- É a próxima lição, interrompeu a professora.
O colega da frente levantou-se, pegou o livro e disse para a professora:
- Ele está na próxima lição.
Todos os olhares para mim. A professora chega-se e pergunta com ar de cretina:
- Você não sabe ler, guri?
Ouvia falar tanto nos castigos da escola. Na tal régua na cabeça, na palmatória, no ficar de joelho que quase desmaiei a frente daquela brutamonte.
- É a minha primeira vez, com voz sumida consegui segredar para a minha primeira e inesquecível professora.
- Você está na classe errada, esta é a classe do segundo ano, falou aquela galinha pestilenta.
Só não apanhei dela porque o bedel me encaminhou para a sala dos analfabetos.
E em casa todos curiosos queriam saber como foi meu primeiro dia de aula e eu todo satisfeito disse que tinha lido para a sala a história de uma tal galinha pedrez. Minha mãe deu uma olhada disfarçada para o meu pai e deve ter pensado:
- Este menino vai longe, já no primeiro dia conseguindo ler!

por: Mario dos Santos Lima