quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

MINHA MAGRELA HOLANDESA

Só bem mais tarde eu fiquei sabendo do que aconteceu. Ela desapareceu e nunca mais fiquei sabendo do seu paradeiro! Certa vez!... A saudade já corroia minha alma e eu absorto em mil pensamentos perambulava pelas ruas naquela madrugada fria. Aqui e ali um pulguento ladrava e em vôos rasteiros alguma ave noturna farfalhava suas asas, de um lado ao outro, na busca de alimento. E nada mais existia, apenas eu e o mundo. A lua, companheira das madrugadas, caminhava comigo silenciosa iluminando meus passos hesitantes. Ela, branca tal qual uma noiva, respingava em luzes respeitando meu silêncio. A viela, margeada de flores, cercas podres caindo, poças de água podre e postes bêbados enfileirados, dava um tom melancólico as minhas tristes lembranças. Caminhava no meu caminhar, de passos perdidos, quando ouço uma voz lânguida, medrosa, suplicante que em desespero me chama de um jeito especial. Reconheço aquela voz metálica. – Por certo é ela, pensei comigo, e perturbado, assustado, parei e feito sonâmbulo fui atraído involuntariamente para o local. - Meu chefe! Aquela voz sumida, triste foi melodia para meus ouvidos naquele momento. - É ela, é ela! Sim é ela, eu reconheço, pois era assim que me chamava. Um misto de tristeza e alegria invadiu minha alma. Alegria por encontrá-la finalmente depois de tanto tempo e tristeza pelo lamentável estado em que a encontrei. Quase de joelhos, ao lado dela, passei delicada e demoradamente meus dedos por todo o seu frio corpo. Queria absorver aos poucos, numa sensação de retrocesso, todo o tempo perdido. Uma lágrima morna desprendeu-se de meus olhos e correu salgada molhando o canto de minha boca. - O que aconteceu com você? Supliquei para ela. E assim, enquanto eu a acariciava, ela começou em profundo soluço falando. - Eu e a Laura nos divertíamos muito! Alguns segundos de sepulcral silêncio, e ela então continuou: - Eu me lembro bem que você me deixava a um canto pedindo para que dali não saísse até a sua volta, mas sua irmã vinha e dizia: - Vamos, vamos sair! Ninguém vai ficar sabendo! - Eu acho que não vou não. Meu chefe vai ficar zangado. - Vamos sim! Eu prometo que deixo você no mesmo lugar. E ela, demonstrando uma saudosa alegria continuou. - E saíamos às duas feitas doidivanas correndo de um lado para outro. Muitos tombos eu levei e ela preocupada cuidadosamente me limpava. Ela suspirou e por algum tempo ficou silenciosamente como que remoendo saudosos momentos passados. Respeitei o seu silêncio, mas com um pouco de raiva, neste intervalo de tempo, pensei: - Ah! Minha irmã, então era você que brincava escondida com a minha holandesa? Em voz sumida completou dizendo: - A minha vida era tão boa, com você e às escondida com sua irmã, mas numa noite escura, lamentavelmente fui seqüestrada. Suspirou demoradamente e continuou: - Enquanto ele me levava eu gritava em vão -“Deixa-me, deixa-me vil ladrão! Quero voltar para meu chefe; Quero brincar com a irmã dele. Deixe-me, deixe-me” E com uma tristeza infinda completou: - Inutilmente eu supliquei para aquele desalmado ladrão e assim fui usada, abusada e abandonada aqui neste local. - Maldito ladrão! Pensei eu. Seu sepulcral silêncio indicou que tudo era tristemente finalizado. Inutilmente eu a chamei. Gritei num grito de dor, e meu grito se perdeu confuso no grito de tantos outros gritos naquela madrugada fria. Chorei lágrimas de dor, raiva e desespero. Juntei o que restou dela e continuei meu caminhar solitário. POR: MARIO DOS SANTOS LIMA

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

BARQUINHO DE PAPEL

A tarde caia preguiçosa e se arrastava serpeando por entre os montes indo morrer negra nos baixios e vales distantes. O Rio Iguaçu estufava fora de seus sulcos cavados no chão e derramava suas águas como lágrimas de súplica pelas cercanias. O Porto Amazonas estava apinhado de gente que esperava ansiosa a chegado do Vapor Peri para recepcionar quem chegava de Porto União ou de São Mateus ou então para o embarque. Eu brincava o meu brincar de cinco anos e ficava admirando aquele fervilhar de final de tarde como se fosse num sonho lindo desenrolando alegremente. Eu ansiava por chegar a São Mateus e me perdia em contemplações seduzido pelas coisas que jamais tinha visto. Mais sonhava que brincava e lembrava. A viagem de trem de Curitiba até Porto Amazonas foi de uma beleza inexplicável. Praticamente desenrolou-se o dia todo e não me cansava de ver pela janela a paisagem que verde e densa corria em sentido contrário; observava lá adiante a Maria fumaça que gemendo, se contorcendo vomitava rolos de fumo e fagulhas pela chaminé engolindo pouco a pouco os trilhos a sua frente. O povo que entrava e saia a cada parada sempre alegre, falando línguas estranhas carregando malas de couro, sacos e caixas despertavam em mim a curiosidade. Tudo tão estranho, tudo tão belo. De repente um apito surdo e meu pai avistando na curva do rio o vapor que surgia grita para mim: - Mario vem pra cá, o vapor está chegando. Minha mãe, com a Laura no colo tratou de reunir a Inca e eu e deixar perto de si os apetrechos da viagem. O povo, como num formigueiro mexido se alvoroçou. Como se fosse numa festa festejou alegremente aguardando o vapor Peri que ao som do seu apito rasgando as águas do rio preparando-se para acostar parecia que feliz também festejava. O povo do vapor fazia acenos loucamente; As mulheres, lindamente vestidas movimentavam de um lado para outro os seus lenços brancos e os homens segurando pelas abas os seus chapéus ramenzoni acenavam também. O povo em terra respondia com a mesma alegria. Chapéus e lenços brancos num quadro místico se misturavam ao entardecer que veio tomar parte da grande festa. Que cerimonial demorado. Mais de uma hora para o desembarque do povo; Para retirar dos porões pelas escotilhas e colocar em terra firme a erva mate, os couros, as crinas, a madeira e os charques e para depois embarcar no lugar o sal para gado, o querosene, os tecidos, as bebidas, as comidas e as quinquilharias. Por fim lá fomos nós medrosamente passando na prancha para entrar no convés do vapor. Fiquei na popa do vapor sob os cuidados de minha mãe enquanto o pai arrumava o camarote onde passaríamos a noite. Permaneci ali por longo tempo absorto naquela pintura de cenário nunca imaginado. Vi lá no alto do barranco o trem chegando à estação e todo aquele povo, na plataforma embarcando. Olhava aqueles operários que incansáveis recolhiam nos vagões as mercadorias chegadas pelo vapor. Quase no lusco fusco, ouvi o apito estridente da locomotiva que dizia àquela gente que estava na hora da partida. Admirei aquele colosso de ferro comprido, que resfolegando soltava fumaça se esgueirando vagarosamente e novamente engolindo os trilhos. Tudo me fascinava. O clec cleque clec cleque de suas rodas de ferro foi rapidamente aumentando de ritmo e aos poucos como num sonho de criança o trem desapareceu devorado pelas matas, pela noite, ou... nem sei mais. A barulheira de agora pouco foi se aquietando. No céu em revoadas a passarada buscava seus ninhos, seus recantos. O povo, no interior do vapor foi se acomodando aos poucos. Reinava a ansiedade, pairava a angustia e a solidão da noite e o balouçar da nau amedrontava as entranhas do Peri. De repente o cheiro gostoso de um feijão, de um toucinho frito com arroz e da batatinha impregnou o ambiente trazendo o ânimo e o apetite. A vozearia então inflou novamente o convés. Achei engraçados aqueles marinheiros todos; pareciam noivas. Vestiam calças e camisas brancas. Usavam quepes brancos que adoraria ter um. Davam ordens. Recolheram a prancha e desamarraram as cordas que prendiam o vapor no cais. Conferiram e ajeitaram toda a palamenta para poder zarpar. A noite sem pedir licença chegou e abraçou tudo que encontrou. A máquina a vapor aliviou um pouco a pressão de sua caldeira num apito rouco indicando o início da viagem. A passarada assustada ou alegre abandonou incontinente seus aposentos dos altos dos arvoredos. Aquela enorme roda começou vagarosamente a girar, batendo cada uma das paletas na água fazendo o vapor aos poucos se afastar da margem desviando dos parcéis em busca do canal de navegação. Quase mais nada se via apenas o ruído borbulhante da água. - Venha jantar, minha mãe me chamou. Dormi tranqüilo ao som das orações pedindo ao Bom Deus uma viagem sem problemas e acordei todo molhado quando o dia se fazia presente. Meu pai, como sempre acertou o ocorrido dizendo: - A água do rio deve ter entrado no camarote pelas vigias mal embaçadas. Voltei para a popa e fiquei vendo hipnotizado o borbulhar das águas do rio fazendo rendas que ficavam estendidas e perdidas para trás. Um marinheiro chegou e vendo o meu entretenimento fez de um jornal um barquinho e amarado a um barbante soltou na água e me deu para segurar. Aquele barquinho era lindo singrando as águas espumantes deixadas pelo vapor. Parecia o filho pequeno seguindo feliz os passos do pai. Eu conversei longamente com ele no meu conversar de gente pequena; Segredei mil coisas e no seu jeito desajeitado, mas lindo confesso que me entendeu e até me disse alguma coisa que hoje não sei. Quis estar lá dentro dele no balançar das ondas. Nossa amizade casou-se ali no véu de espumas que o vapor e ele faziam. São Mateus aos poucos foi surgindo na curva do rio. Foi crescendo, foi crescendo e o apito rouco do Peri deixou no convés o povo feliz acenando para o povo do cais. Deixei tristemente o barquinho amarado na popa e pela mão desembarquei com minha mãe. Implorei para que minha mãe esperasse o vapor zarpar no que fui atendido. Algumas mercadorias desembarcadas e outras tantas embarcadas e novamente o apito rouco do vapor dizendo adeus e ele começou a navegar. Uma tristeza imensa invadiu o meu coração de menino. Vi de longe o meu barquinho feliz deslizando no embalo das ondas que o vapor deixava. Mais adiante, antes de desaparecer na curva do rio o vapor deu rouco seu último apito e me pareceu ouvir o meu barquinho de papel imitar o Peri e apitar também e no seu apitar dizer: - Adeus meu amiguinho, até qualquer dia. Uma lágrima incontida deslizou infame pela minha face indo morrer no canto de meus lábios. Ergui meu braço num adeus saudoso virei-me e segui os passos de minha mãe. Quedo de quando em quando me ponho a lembrar do meu barquinho de jornal No vapor Peri que se encontra recuperado em São Mateus se você olhar com atenção na popa dele encontra o sinal de um barbante amarado. POR: MARIO DOS SANTOS LIMA

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

O PRIMEIRO LIVRO QUE GANHEI

Tudo o que acontece ou surge pela primeira vez em nossa vida fica indelevelmente marcado. É o primeiro beijo, a primeira namorada, a primeira vez, bem... Tudo fica registrado e lá de vez em quando recordamos e nos deliciamos com isto. O que me traz um gozo íntimo e suave é a lembrança do primeiro livro que ganhei. Tinha eu aproximadamente de seis para sete anos e a nossa família morava em uma casa, de parede e meio bem próximo de onde hoje se assenta a igreja matriz de Arapongas. Eu me encantava vendo, ao entardecer, logo após o jantar, meu pai desfolhar o jornal que ele recebia não sei de quem, mas que sempre era colocado por debaixo da porta da sala de casa. Ele me punha sentado em sua perna para eu ver e admirar a figura de um lindo cavalo que era reproduzido em tamanho quase total da página do jornal. Era uma propaganda impressa naquele jornal, mas para mim aquilo era real, e tinha o fascínio de me transportar para uma viagem a um mundo de fantasias. Eu ficava embebido na figura majestosa do animal ouvindo meu pai contar mil e umas maravilhosas histórias sobre o tal cavalo. Meu pai me envolvia no conto, e eu adorava isto. Estas histórias ficavam povoando na minha memória, e isto fazia com que eu sonhasse dia e noite cavalgando este belo animal. Nos meus devaneios o meu lindo alazão era parecido ao do jornal. Eu cavalgava sonhos e vencia barreiras. Meu alazão conversava numa conversação animada comigo, e nós riamos muito fazendo nossas traquinagens, nossas estripulias, correndo soltos pelo campo sem o compromisso com a realidade. Era meu amigo inseparável. Ainda bem que a nossa memória tem a capacidade de armazenar e evocar informações ao momento que desejamos. Este cavalo ainda está vivo em minhas recordações. Já não é um alazão novo e nem estamos por aí fazendo confusões, e nem mais eu mantenho um diálogo como dantes com ele, mas ainda lhe tenho grande estima. Às vezes sentamos nós dois, lado a lado e falamos, recordando das coisas que fazíamos naqueles tempos. Ele relincha tristemente ao meu lado num relinchar saudoso, e eu lhe afago a cabeça. Um dia meu pai, ao entardecer chegou como sempre chegava, e logo após o jantar disse-me que tinha alguma coisa para me mostrar. Não pegou o jornal como de costume, mas trazia na mão um livro. Lembro-me que era bem colorido. Sentei na sua perna e ele leu, de cabo a rabo uma bonita história de um cavalo. Lembro-me ainda bem que em cada página tinha um potrinho e um menino em diversas situações empinando e correndo por belas paisagens, e logo abaixo das figuras algumas linhas escritas que por certo era de onde meu pai fazia a leitura. - Ah! Esta é a história de meu alazão, pensei acreditando ser verdadeira ao ouvir a leitura que meu pai fazia. A história era quase real. Narrava a vida de um cavalinho que nasceu numa fazenda e fez amizade com um menino e etc, etc e tal. - Sim, esta é a minha história com o meu alazão, pensei comigo. Eu me coloquei vivenciando as aventuras do personagem menino do livro. Meu pai terminou de ler a emocionante narrativa e me disse: - Amanhã vamos levar este livro para a biblioteca da escola. Você vai fazer uma doação dele. No momento fiquei p. da vida e perguntei: - Mas por quê? Ele é meu. - Não meu filho, o livro na biblioteca irá proporcionar e incentivar muita gente à leitura, e você vai ser o agente participando ativamente desta atividade configurada na doação deste livro. Muitos meninos vão poder ao lê-lo sentir as mesmas sensações, as mesmas emoções que você vivenciou e sentiu. - O livro é o invólucro do espírito transformado em caracteres e figuras, continuou ele para mim. Quanto mais pessoas abrirem e folhearem suas páginas, mais e mais vivo, e penetrante ele estará em outras mentes. Meu pai deve ter escrito alguma dedicatória na página inicial em meu nome; No dia seguinte lá fomos nós entrega-lo na escola. O meu primeiro livro tão rapidamente se foi como veio. Ele trazia a história de meu alazão num mundo imaginário. Entregando o livro, naquele momento, estava me sentido como um pai, num campo de concentração, vendo seu filho ser arrastado ao holocausto do banho, no forno a gás. Meu pai, segurando-me pela mão, e a passos largos se afastava cada vez mais da biblioteca. Experimentei olhar para trás, e lá estava ainda o livro no balcão da biblioteca, que sorriu e me deu um adeus com suas folhas em revoada. Uma lágrima correu sem vergonha pela minha face. Nunca mais vi o livro, mas guardo na memória a sua narrativa na voz de meu pai. POR: MARIO DOS SANTOS LIMA

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

PRIMEIRA ESCRITA A TINTA

No meu tempo de grupo escolar a coisa era bem diferente do que é hoje. Você aprendia o B A BA e a caligrafia já no primeiro ano de aula; era simplesmente com lápis e só depois de você demonstrar certas habilidades manuais com o dito cujo é que passaria a ter direito de escrever à tinta. Escrever à tinta exigia uma parafernália louca de apetrechos e uma atenção do capeta do escrevente. Para a escrita à tinta o vivente tinha que estar familiarizado com estes apetrechos todos como, por exemplo: com um pau roliço, em madeira do tamanho de um lápis, sendo mais grosso na parte de baixo e mais pontiagudo na parte de cima, levando na ponta mais grossa a pena de aço – esta pena, em época ainda mais anterior já foi de ganso, galinha ou peru dependendo da disponibilidade da penosa no momento. É claro que não poderia faltar o encantado vidro tinteiro contendo o líquido, azul ou preto e também não se podia dispensar o salvador mata-borrão. O mata-borrão podia ser sofisticado tal qual um berço de balanço ou poderia ser simplesmente uma folha solta. O escritor à tinta ou de caneta tinteiro, tinha que ter uma expertise a toda prova. Verificava se a pena estava com a abertura melimétricamente suficiente para que a tinta pudesse prazerosamente deslizar pela fresta até a ponta e deitar suave e folgadamente pelo papel ao bel prazer dos movimentos alfabéticos ou numéricos da caneta. Quando vinha a tentação louca de escrever o escrevente mergulhava a pena no vidro tinteiro retirando-a cuidadosamente sem deixar de verificar a quantidade de tinta que ficava disponível na pena. Com um gesto delicado dirigia a pena ao local que iria dar inicio a escrita tendo sempre, na outra mão o mata-borrão para que a cada novo procedimento de mergulho da pena no tinteiro pudesse ao mesmo tempo cobrir a parte escrita com o mata borrão, pressionando-o levemente para que o excesso de tinta fosse delicadamente capturado. Bem, eu estava no primeiro ano e verifiquei que a professora – a gente não chamava de tia a professora naquela época e educadamente se levantava quando ela entrava na sala – como estava dizendo, ou melhor, escrevendo verifiquei que a professora cobria de elogios meus colegas quando eles apresentavam as tarefas com alguma coisa a mais além do pedido: - A classe tem que seguir o exemplo do Pedrinho, pois a ele foi pedido isto e fez mais aquilo, dizia a professora feliz para a sala. Era para o Pedrinho, Toninho, Mariazinha; todo mundo recebendo elogios e eu ainda virgem deste prazer. Tenho que fazer alguma coisa para estar na mídia também! Ficava eu matutando o tempo todo. Todos os santos dias tinha tarefa para ser executada em casa e todos os santificados dias tinha algum colega meu recebendo elogios. Pensei, pensei e acabei por resolver minha angustia e disse para mim mesmo: - Amanhã vou receber estes elogios custe o que custar. Amanhã a sala toda vai saber quem sou eu. Cheguei em casa todo feliz; cantarolando, assoviando. - O que se passa com você guri? Estranhou minha mãe. - Nada não, manhê, respondi para ela colocando meu embornal na mesa, retirando meus cadernos e livros para início da tarefa para o dia seguinte. - Manhê, cadê aquela caneta e tinteiro que o pai escreve cartas pro vô? - No armário, filho... Um pouco de silêncio e ela pergunta: - Mas por que? - vou fazer minhas tarefas. - Mas a professora já te ensinou a escrever com caneta? Perguntou ela admirada. - Sim. Respondi apressadamente. Peguei a caneta, o tinteiro e o mata borrão e comecei a fazer a tarefa. A tarefa era copiar 5 linhas do livro e nada mais. Treinamento de caligrafia e, com certeza com intuito de memorização da grafia de algumas palavras. Levei aproximadamente 3 horas para realizar a tarefa, com a ajuda da mãe e do pai. O pai, de semblante fechado criticava a professora: - Este tempo moderno acaba estragando a criançada. Terminei finalmente e pude dar uma olhadela - só eu é claro, pois o pai e mãe já tinham ido dormir. Fiquei todo orgulhoso de mim e já fui imaginado o grande sucesso do dia seguinte. Todos estariam morrendo de inveja. É claro que pela primeira escrita à tinta todos aqueles borrões e respingos de tinta seriam plenamente desconhecidos. Não fariam diferença alguma. Esta noite nem dormi; Feito uma betoneira me virei ansioso de um lado para outro na cama maçarocando todo o lençol. Na manhã seguinte apenas levantei. Fui o primeiro a chegar à escola. Estava deveras doido para mostrar a minha obra de arte à professora. Chegou o grande momento. Entregamos, um a um as tarefas e a professora, como de costume, pegando uma a uma foi tecendo os comentários e elogios. Pegou a minha... Olhou com um olhar indescritível. Ficou boquiaberta. Mudou de cor. Apoiou-se à mesa para não cair. Transtornada, alucinada gritou para a classe: - De quem é esta coisa aqui? Meu Deus! Com todo o trabalho que tive acabei por esquecer de colocar o meu nome. Aí passou um calafrio pela minha espinha e pensei: - Será que a maldita professora vai deixar de me elogiar só porque esqueci de assinar? Levantei o braço e me coloquei altivamente em pé. – É minha. Soberbamente respondi. Jamais eu perderia este elogio e por alguns segundos fiquei imaginado a professora me levando até a frente da sala dizendo: - O Mario superou todos vocês e de agora em diante ele será o exemplo para todos da sala. E ao dizer isto me abraçava chorando de emoção quando, de repente me vi voltando à realidade com o berro dela: - Quem mandou você fazer esta porcaria? Falou isto, rasgando em mil pedaços a minha tão sofrida obra de arte uivando furiosa tal qual um leão com os grãos esmagados entre dois tijolos. A sala toda tremeu por alguns segundos e eu recebi umas pesadas e doídas reguadas na cabeça e ainda de lambuja fiquei de joelho do lado de fora da sala fazendo a mesma tarefa mas agora a lápis. - Como foi, meu filho? Em casa todos ansiosos queriam saber o resultado de minha arte de escrever a tinta. Até o vizinho veio para conhecer o novo gênio da escrita. - A professora ficou encantada guardando a escrita pra ela, respondi rapidamente indo furioso me trancar no quarto. POR: MARIO DOS SANTOS LIMA

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

A #GALINHA PEDREZ

A busca da segurança é uma ilusão permanente. A solução deste dilema está na sabedoria da insegurança ou da incerteza. Na realidade a busca da segurança é um apego ao conhecido, àquilo que já vivemos, que já experimentamos, e assim o conhecido nada mais é que o nosso passado. O bom ou o mau passado, isto não importa. Se vivermos apenas do conhecido estaremos regredindo, estaremos cometendo uma tragédia, em vista de que o conhecido nada mais é do que a prisão de velhos condicionamentos. Não existe evolução no conhecido, porque ele já foi revelado e será apenas a estagnação e pode gerar desordem. Acredito piamente que a incerteza do que fazer, que o sufoco que muitas vezes enfrentamos, é um terreno fértil para a criatividade. Por estas e outras eu vivo o presente na expectativa da incerteza do depois, no alegre cenário do antes que faço repetir muitas e muitas vezes. Kierkegaard escreveu: A vida só pode ser compreendida olhando-se para trás, mas só pode ser vivida olhando-se adiante. Eu gosto de reviver as cenas de quando era criança para me divertir, e muitas vezes, para refletir. Vou até lá e assim tal qual criança sapeca crio e recrio, invento e reinvento, pinto e repinto com o poder de minha mente. Se me permitem vou levar vocês até o meu primeiro dia de aula. Minha mãe teve o cuidado de confeccionar o jaleco branco e o embornal para acondicionar caderno, lápis, borracha e o livro Cartilha Sodré. Antes de sair para a minha aventura radical de buscar conhecimentos além das quatro paredes de casa, minha mãe deu uma bela olhada nas minhas unhas e nas minhas orelhas, penteou meu cabelo e me deu a sua preciosa benção. Naquele momento eu era o orgulho da família, estava ingressando na escola primária. Por certo meu pai contou para seus colegas de trabalho, deve ter escrito uma carta para seu pai dizendo que seu neto era um cara de grande sucesso. Minha mãe deve ter ido às vizinhas para contar a grande novidade. Ela deve ter rezado algumas ave-marias para pedir proteção a virgem santíssima, pois seu filho estaria, a partir de agora no meio de gente estranha. Eu fui todo paramentado para escola, feliz e orgulhoso, mas angustiado pelo desconhecido que estaria enfrentando a partir daquele momento. Quase chegando à escola ainda estava na lembrança o insistente tchau que minha mãe dava e as lágrimas que vi correr pela sua face. Chamaram pelo meu nome e indicaram a sala. Tremi nas pernas ao entrar nela. Minha primeira vez foi cruel e sufocante. Era uma sala provisória, pequena e de poucos alunos. Sentei-me na fila da direita e era o terceiro da frente para o fundo. A professora entrou, ficamos de pé e eu gelado, angustiado, de goela seca parecendo boi assustado na fila do matadouro. Aqueles poucos colegas de sala se agilizavam, cumpriam as ordens da professora sem pestanejar e eu feito um bocó, perdido queria somente um buraco para sumir. A professora deu a ordem da leitura. Cada aluno deveria levantar e ler um trecho. Começou desastradamente exatamente pela minha fila. O primeiro da fila levantou, empunhou o livro a sua frente e começou a leitura da tal galinha pedrez. Achei bonita e engraçada a história que ele lia. Terminou a leitura e a professora ordenou que o da minha frente fizesse o mesmo. Ele leu o mesmo trecho. Estava chegando a minha vez. Só não urinei nas calças porque me segurei ou talvez a urina tenha saído pelos meus poros, pois suava feito um lazarento. O moleque da frente terminou a leitura e a professora falou qualquer coisa que não entendi e ordenou que eu iniciasse a leitura. Peguei o livro, abri-o na página adequada com a ajuda do colega da frente e com muito custo me coloquei de pe. Só entendia das figuras isto porque não era cego, mas das letras... nada disto ainda tinha sido apresentado para mim. O sufoco, a angustia acaba sempre criando em nós um dispositivo de defesa. Com certeza toda aquela criançada estava passando pelo mesmo sufoco que eu e, no entanto estavam ali realizando as suas tarefas normalmente. Eram criativas e por que não eu. Investi-me de uma segurança inabalável, de uma fortaleza inacreditável e me coloquei a ler. Na realidade comecei a repetir com desenvoltura, teatralmente exatamente o que os outros dois tinham lido. Imitando os dois meus colegas fiz até as entonações de voz. - É a próxima lição, interrompeu a professora. O colega da frente levantou-se, pegou o livro e disse para a professora: - Ele está na próxima lição. Todos os olhares para mim. A professora chega-se e pergunta com ar de cretina: - Você não sabe ler, guri? Ouvia falar tanto nos castigos da escola. Na tal régua na cabeça, na palmatória, no ficar de joelho que quase desmaiei a frente daquela brutamonte. - É a minha primeira vez, com voz sumida consegui segredar para a minha primeira e inesquecível professora. - Você está na classe errada, moleque! Esta é a classe do segundo ano, falou asperamente aquela galinha pestilenta. Só não apanhei dela porque o bedel me encaminhou para a sala dos analfabetos. E em casa todos curiosos queriam saber como foi meu primeiro dia de aula e eu todo satisfeito disse que tinha lido para a sala a história de uma tal galinha pedrez. Minha mãe deu uma olhada disfarçada para o meu pai e deve ter pensado: - Este menino vai longe, já no primeiro dia conseguindo ler! POR: MARIO DOS SANTOS LIMA