domingo, 28 de julho de 2013

A FORÇA DE UMA PALAVRA

A palavra tem força? Eu afianço que sim, pois já passei por tal experiência. A escritora Rosenfeld já escreveu no seu artigo que "a palavra pode levantar ou derrubar, agradar ou desagradar, emocionar ou irritar, trazer para perto ou afastar. Pode ser mel ou fel, tanto para quem ouve como para quem fala". A palavra pode ser violentamente vomitada, ou então, deslizar pelos lábios como brisa suave. Conforme o som da palavra dita, ela vai fosforilando, numa dança louca, em movimentos lentos que partem da boca, e se aperfeiçoa num escutar tranqüilo. De um jeito ou de outro ela transforma. É simplesmente o resultado do efeito do movimento da asa da borboleta. Tudo pode acontecer. A vida nos surpreende. Era uma tarde fria e chuvosa. A lama teimava em sujar os calçados, e a roupa daqueles homens que abriam as valetas para alicerçar as bases primeiras da Refinaria. Um a um, vinham até mim para assinar os documentos ou recibos de adiantamento. O jovem, na fila, passou a mão nas calças para limpar o barro, e num gaguejar terrível perguntou: - onde coloco meu dedo? Olhei com assombro para ele e perguntei: - De onde você é? - Sou do Ceará, respondeu-me envergonhado, com dificuldade, atropelando as palavras. - É a primeira vez que vejo um Cearense analfabeto! estou decepcionado com você. Fui duro com ele porque sou contrário que alguém seja privado da leitura e da escrita. Sou muito mais severo e pouco tolerante quando isto aconteça com um jovem. Ele sujou o documento com seu dedo e se afastou cabisbaixo. Uma surpresa boa alguns dias depois aconteceu. Voltava do almoço e aquele gago analfabeto estancou na minha frente e gaguejando perguntou: - Você me ajuda nas minhas tarefas? - Este cara está de sacanagem comigo! pensei cá com meus botões, e grosseiramente perguntei: - Ajudar no que?. - Matriculei-me num curso de alfabetização para adultos, e tenho dúvidas, com relação a alguns deveres que o professor me passou. Quase cai de costa. Aceitei de imediato ajudá-lo, e assim dia pós dia, eu trocava meu horário de descanso pós almoço pela ajuda aquele analfabeto. Para incentivá-lo a corrigir a gagueira, falava sempre do grande orador grego Demóstenes, que à força de perseverança, ultrapassou o problema da gaguez, declamando poemas, enquanto corria contra o vento, com a boca cheia de pedras. Saí da Petrobrás e nunca mais ouvi falar do jovem gago analfabeto. O domingo amanheceu lindo, e me preparava para ir a missa no Colégio que ficava em frente a nossa casa. Alguém bate palmas no portão. - Deve ser o pedinte de sempre, comentei com a Alice. Antes de preparar os alimentos para ir entregar ao mendigo, resolvi dar uma espiadela. - Não me parece ser pedinte não! comentei. É um cara bem vestido. - Pois não? - Seu Mario, não me reconhece? Fez-se ouvir aquela voz lá no portão. Tenho alunos tantos, sou consultor, quem sabe, talvez alguém desse meio. Fui sorridente até o portão e disse: - Não estou reconhecendo você não! - Vim convidá-lo para minha formatura! - Muito obrigado, mas quem é você. Abri o portão convidando-o para entrar, e ele em tom sério disse: - Um dia alguém cutucou profundamente o meu íntimo quando disse: "É a primeira vez que vejo um cearense analfabeto" Fiquei pasmo! Que mudança! Quase não acreditei. - E a gagueira? perguntei incontinente. - Segui o exemplo de Diógenes, não com as pedras na boca, é claro, disse me ele rindo, lembrando de sua gagueira. Hoje não me recordo se foi direito ou engenharia civil que ele concluiu. Fui a formatura e pude ver, com certo orgulho, aquele formando fazendo o discurso da turma. POR: MARIO DOS SANTOS LIMA

quinta-feira, 25 de julho de 2013

A DELICIOSA COMIDA DE MINHA VÓ

A vontade ou o desejo é a capacidade através da qual tomamos posição frente ao que nos interessa custe o que custar. É a intenção forte levada para um determinado objetivo. É ver, por exemplo uma apetitosa guloseima e partir com tudo para conquistá-la ou saboreá-la. Minha vó Francisca era, dentre muitas qualidades que tinha, uma eximia mestre cuca. Suas deliciosas comidas, feitas com esmero e carinho, trazia não só os famintos de casa à mesa, mas também, atraídos pelo irresistível aroma desprendido das panelas de ferro da cozinha dela, os apreciadores da boa comida, que por ventura pelo caminho ao derredor estivessem passando. Ninguém resistia, muito menos o meu pai, moleque pequeno ainda. Meu vô Moises, lapiana da gema, além de cuidar dos afazeres do sítio, quase sempre, pelo seu caráter, pelo seu exemplo impecável de vida, era convidado a fazer parte do corpo de jurados. Encilhava seu cavalo e punha pé na estrada até a cidade. O sítio distava perto de légua e meia da Lapa. Muitas vezes o trabalho do conselho de sentença se prolongava noite a dentro, fazendo com que meu avô retornasse tarde para casa. No caminho ele já vinha, antecipadamente, se deliciando com a comida quentinha que minha avó preparava para esperá-lo. O trote cadenciado do animal ia paulatinamente engolindo a estrada diminuindo a distância. Nas noites de luar a lua, lá no alto acompanhava o trotear e abençoava o cavaleiro com sua luz. Nas noites escuras, ou chuvosas, apenas o piar das corujas saudava o destemido caminhante. Ao vencer a última curva da vereda, lá estava, pendurado na varanda iluminando todo pátio, o lampião a querosene. Pelo ruído do patear, e o resfolegar alto do animal, minha avó apreçava a janta arrumando a mesa, e ia ao pé da porta, no alpendre esperar sorrindo meu avô. Aos poucos o vulto escuro, lá na curva, se aproximava tomando luz e tomando forma. - Como foi o júri hoje? perguntava minha avó abraçando-o carinhosamente. - Fui escolhido novamente, respondia com um sorriso afetuoso. Tirava as botas, ajudado pela vó Francisca, lavava os pés e alargava as narinas para perceber melhor o aroma que vinha da panela e dizia. - Pelo cheiro temos aquele arroz gostoso que só você sabe preparar! não é mesmo? - E o Chiquinho? pergunta meu avô pelo meu pai. - Já está dormindo. Sempre que meu avô tardava em chegar, meu pai, fazia suas manhas, rolando e teimando daqui e acolá; Era posto a deitar pela minha avó, mas, lamentavelmente, o cheiro do tempero delicioso do arroz que ela preparava era o antídoto que vinha perturbar o sono dele. Esgueirado por detrás da porta do quarto, sondava pela fresta o momento da chegada de seu pai Moises. E a cena se repetia sempre como numa ensaio de teatro. O Chiquinho surgia da penumbra do quarto, com a cara lambuzada de sono, e os olhos morteiros de culpa pedindo clemência para sua mãe, puxava a cadeira e sentava incontinente ao lado de seu pai. - E você ainda não dormiu, moleque? Dizia sua mãe entre amorosa e brava. Sorria para meu avô como que dizendo: - Este menino não tem jeito não! Dando uma piscadela, meu avô passava a mão na cabeça de meu pai. No silêncio da noite no crepitar das brasas do fogão, e amparada pelo fumegar do lampião pendurado na parede, os dois sofregamente comiam aquele manjar preparado por mãos divinais. Minha vó, a um canto da mesa, feliz acompanhava a cena. POR: MARIO DOS SANTOS LIMA

sábado, 6 de julho de 2013

O LADRÃO EUNUCO

Ela dá uma cutucada e grita: - Seu filho de uma puta! Para quem não sabe, eunuco não é um viado. Eunuco é, segundo relatos antigos, o servo castrado para cuidar das mulheres do rei. O eunuco não tendo condições de ter qualquer tipo de relação sexual, não poderia, por esta razão, dar umas trepadinhas nas beldades do monarca. Quanto a isto o soberano ficava tranqüilo. É claro que o castrado recebia, de quando em quando, uns trocadinhos por fora, e facilitava os tarados necessitados do castelo. Bem, a história é outra. Minha filha Izabela freqüenta um curso noturno para os semi analfabetos na língua inglesa. Do local do curso até a casa dela tem uma boa distância, pessimamente iluminada, e freqüentada por malandros e vadios cachorros que se amoitam na calada da noite. Ela desenvolve ações sociais, e é portadora de um bom coração. Adotou, por segurança, um desses vadios quadrúpedes desta rua. O adotado, já sabia o horário do final da aula, deixava o coral de uivos e vinha para frente da escola esperar minha filha. Com um olhar de puta velha carente, de rabo abanando, ficava de olho na porta de saída. Ela saia e ele a acompanhava até a entrada de seu condomínio. Tudo isto ele fazia por conta de um pedaço de pão ou bolacha. E o inesperado aconteceu. Amanheceu um dia incrivelmente frio e chuvoso, e o maldito chuvisqueiro não parou hora alguma. A aula de inglês termina, a porta se abre, e lá estava ele, todo molhado, feliz abanando a cauda. Minha filha, debaixo do guarda chuva, arremessa um pedaço de pão, passa a mão na cabeça dele, e a largos passos se dirige a sua casa. A chuva caia pesada, e os dois rumo à casa. Aqui e ali, um ou outro pedinte, e malandros por debaixo das marquises. A cachorrada enciumada, não se sabe, ladrava enlouquecida para ela ou para seu amigo pulguento. Destemido o guapeca, olhava seus semelhantes, mas seguia fiel a sua protetora. Por certo pensava: - Hei de protegê-la com unhas e dentes! O sarnento molhado seguia os paços encharcados nas poças de água. Era o próprio escudeiro seguindo seu herói. De repente um carro para, e salta dele um truculento, que via, na bolsa que minha filha carregava, o dinheiro transformando-se em fumaça. Derrubou minha filha agarrando sua bolsa. A luta era desigual. Por certo o cachorro entendeu que o miserável queria o pão ou a bolacha que ela carregava. Latiu primeiro para impor respeito. Seu latido fraco e esganiçado de nada adiantou. Então avançou e começou com dentadas para tentar afugentar o ladrão. A luta era ferrenha agora. Minha filha defendendo a bolsa, o cachorro defendendo seu pão e o ladrão querendo o dinheiro. Ela, no alto poder de sua raiva, quebra o guarda chuva nas canelas do ladrão enquanto o cachorro gruda, com uma dentada, o saco do miserável Ela, num golpe certeiro,dá uma cutucada nos grãos dele, e grita: - Seu filho de uma puta! Ouviu-se um grito de terror e o som de dois plim, plim no chão. O bandido eunuco fugiu deixando o carro e as bolas perdidas no asfalto. Minha filha, perdida em lágrimas, deitada no asfalto, toda molhada, era consolada pelo seu adotado que lhe lambia o rosto e suas mãos, dizendo feliz: - Parabéns Izabela, você lutou valentemente defendendo meu pão e minhas bolachas. POR: MARIO DOS SANTOS LIMA