domingo, 28 de setembro de 2014

MÃO SUJA

Imagino que eu era uma pessoa mais ou menos teimosa quando criança. Tinha por certo uma personalidade marcante. O teimoso normalmente se recusa a aceitar as evidências, e comigo acabou acontecendo isso uma vez. Meu pai um dia contou um caso interessante que aconteceu comigo, e eu me lembro ainda da cena. Deus por certo quando começou a pintar o planeta errou na dose de tinta ao colorir a terra na região de Arapongas. É de um marrom sangue de boi amanhecido. É tão grudento, mas tão grudento que acho ser pior que o capeta tentando o vivente pecador. A terra daquela região deve ter alguma substância ácida, pois quando criança, nossos pés, pelos folguedos descalços, viviam encardidos com sulcos doloridos quase sangrando. Minha mãe sempre dizia: - Não brinquem descalço nesta terra! Criança obedece? Só quando dorme. Muitas vezes minha mãe ficava endoidecida com minha desobediência, e rolava então umas chineladas doidas na bunda. As chineladas tinha a função de avivar assim o cérebro, lá na parte das lembranças, das coisas que podia e das que não se podia fazer. Era sintomático, depois das chineladas amorosas recebidas, lá ia eu fazer exatamente o que minha mãe não gostava ou que tinha proibido. Fazia por birra ou por vingança, nem sei. Ironicamente eu a provocava chafurdando na terra que Deus errou na receita da cor. Enxovalhava-se todo em represália ao castigo recebido dela. Minha mãe não se dava por vencida. Mais chineladas na bunda, e aí eu me rendia num choramingar ranhoso, grudado nas pernas dela. A arma da criança é saber precisamente o que os pais não gostam, para usar exatamente isso como forma de contestação, ou para simplesmente conquistar alguma coisa. E eu continuei por muito tempo tentando conquistar isto ou aquilo, sujando meus pés e minhas mãos naquela grudenta terra vermelha. Certa feita, fomos visitar pessoas ligadas ao nosso sangue, as quais meus pais chamavam de parentes. Elas moravam em São Mateus. A viagem de vapor de Porto Amazonas a São Mateus durava uma noite. Para mim era quase um século. Convenhamos que para uma criança tanto tempo presa, ou no camarim ou sendo monitorada no convés, ultrapassa o limite da paciência. Pouco santo que era, devo ter aprontado poucas e boas nesta viagem, e recebido algum corretivo um pouco menos santificante. O vapor atracou finalmente no porto. Eu, preso pelas mãos cuidadosa e atentas de minha mãe, desci lépido pelo trapiche já com o plano infernal arquitetado. - Agora vou à desforra total! Acredito que, raivoso naquele momento, pensei. Imediatamente me desgrudei dela, e para mostrar toda minha força, e me vingar me joguei feito um doido naquela terra, esfregando sofregamente minhas mãos nela. O povo parou por momentos imaginando que fosse a apresentação de alguma performance. Minha mãe gargalhou, num gargalhar gostoso acompanhado de meu pai. Como o riso é contagiante o povo riu ruidosamente também, principalmente quando me levantei, e assustado verifiquei que minhas mãos continuavam limpas. Detestei aquela terra argilenta que não me sujou as mãos; Deus, com certeza, descuidado esqueceu-se de colocar nela a tinta vermelha. POR: MARIO DOS SANTOS LIMA

domingo, 21 de setembro de 2014

A BICICLETA PROIBIDA

A bicicleta exerce um fascínio enlouquecedor tanto para quem não sabe equilibrá-la por entre as pernas como para quem sabe, mas não a tem. Eu tinha uma. Bem... Não era minha, mas pelo cargo importante que exercia na empresa de engenharia, foi colocada a meu dispor uma linda bicicleta holandesa para que eu pudesse percorrer, e acompanhar as obras em construção. - Cuide bem dessa bicicleta! Foi a recomendação severa que o dono da empresa fez para mim. E que esmero tinha eu por ela! Ela era minha paixão! Trepava nela tão somente para o exercício da profissão. Fora do expediente de trabalho, sábados e domingos, eu usava então gastar a sola do meu calçado. O relacionamento meu com a magrela foi se tornando cada vez mais grudento, mais íntimo, ao ponto dela, quando chegava de minhas andanças, resmungar, tal qual uma amante enciumada: - Até que enfim você chegou! Às vezes ela concluía: - Não gosto de ficar aqui sozinha, abandonada, gosto sim, de estar entre suas pernas! Com o passar do tempo comecei a notar que ela estava um tanto diferente, não macambuzia, mas muito coquete para meu gosto, e já não mais reclamava a minha presença. - Será que a danada estaria de caso com algum outro trepador? Pensei cá com meus botões. O tempo passou, e um dia ela, só para me sacanear, delatou: - A Laura anda me usando! - Puta merda, então é por isso que ela não liga mais para mim! Pensei. Aquela notícia foi como uma tijolada nos meus grãos. No início fiquei possesso, quase encapetado; o sangue subiu e desceu fervendo pelas minhas veias e artérias; Os grãos do saco desapareceram, e senti um amargo esquisito na boca; Não sabia se dava uns chutes na magrela ou esganava a minha irmã. Fui para dentro de casa, e passei uma descompostura amorosa em minha mana dizendo: - Eu arrebento teus cornos se você ousar mexer na minha bicicleta! Em parte eu não acreditava que minha irmã, pequenina de tamanho que era, magrinha, pudesse andar naquela enorme bicicleta adulta, masculina. Mas nessa vida tudo é possível. Para evitar controvérsias, a partir de então, ao deixar a bicicleta estacionada, eu tinha o cuidado de marcar no chão a posição exata dela. Ao retornar para usá-la, verificava se estava tudo conforme tinha deixado. Passaram-se os dias sem qualquer alteração até que a magrela me segreda: - Sua irmã continua me usando. - Mas como? Perguntei atônito para a bicicleta. - Tendo o cuidado de colocar-me na mesma posição que você deixou. Respondeu-me ela. Quis matar a Laura, mas ela se aninhou na proteção do colo de minha mãe. - Eu te esgano! Rangendo os dentes gritei para ela. A partir de então, além de deixar a magrela posicionada, esvaziava seus pneus, tendo o cuidado de esconder a bomba. Eu acho que minha irmã, além da proteção de minha mãe ela deveria ter a proteção de uma legião de anjos. Todos os dias eu chegava, conferia a posição da bicicleta, enchia o pneu, e saia para o trabalho. Apenas estranhava, ao estar enchendo o pneu, ver minha irmã toda nervosa por debaixo da cama. Um dia veio a impiedosa revelação. A bicicleta rindo, olhando para mim, comenta: - Estou completamente dolorida e feliz! Sua irmã todos os dias vai por aí comigo, sacolejando pelas ruas. - Mas como, se os pneus estão vazios? - Por isso é que estou toda dolorida, concluiu a magrela para mim. Chiu, chiu. A bomba gemendo encheu um e depois o outro pneu. Pensei furioso: - Ou o pouco peso dela nada fez com que a câmera de ar se rasgasse ou os anjos safados carregaram a bicicleta no colo! E, feito um possesso, locomovi meu esqueleto a fim de bater na Laura. Minha mãe se entrepôs entre nós. Devolvi a bicicleta. POR: MARIO DOS SANTOS LIMA

sábado, 13 de setembro de 2014

FLUTUANDO POR ENTRE AS PEDRAS

Eu sempre tive verdadeira paixão pela levitação. Era tanta a vontade de levitar que estive no Tibete, na terra mágica no monte Evereste. Permaneci algum tempo na mística cidade de Lhasa só para desenvolver e treinar exaustivamente o processo de flutuação de meu corpo. Conseguia elevar meu esqueleto por alguns milímetros do solo. Mal sabia eu que um dia teria que praticar isso sem aviso prévio. Mas lamentavelmente tive que fazê-lo! Eu a Irene, e minhas duas irmãs Inca e Isa, resolvemos almoçar em Paranaguá passando pela estrada da Graciosa. Um dos mais belos e históricos caminhos deste imenso Brasil. Parando prazerosamente, aqui e acolá, pelos pontos turísticos chegamos ao Rio Nhundiaquara. Diga-se passagem uma parada obrigatória. O Rio corre ligeiro por entre as pedras, e se esgueira feliz por entre os cascalhos a se ver envolto por rica e refrescante vegetação. O rio neste lugar é livre e feliz Ninguém, neste ponto, resiste à beleza incomparável das margens dele. Todos, quase sem exceção, descem para, entre as corredeiras, pular de pedra em pedra. Outros preferem sentar preguiçosamente em algum rochedo e respirar absorvendo demoradamente a beleza do local. Às vezes tem mais gente que cascalho, e o acidente inevitavelmente pode acontecer. É comum às vezes dois tentarem galgar a mesma rocha, e tragicamente assim um deles irá se refrescar nas águas frias. E aconteceu comigo. Eu queria levitar, mas não daquela maneira. Desci da estrada ao rio, e me inseri quase flutuando de pedra em pedra, tomando o cuidado para não cair na corredeira, que passava sapeca querendo lamber molhado as minhas pernas. Até que eu estava me saindo bem no processo de pular de um lado ao outro encurtando distâncias; os anjos me acompanhavam apoiando meu corpo para o não acidental desequilíbrio, mas o imprevisto aconteceu, ou o capeta tomou conta de tudo. Quis pular! Olhei diversas vezes, fiz meus cálculos de geometria plana e espacial, calculei os ângulos possíveis, traçando cuidadosamente a trajetória de onde eu me encontrava até a pedra um pouco mais acima. A pedra do desejo estava tomada pela Irene. Nos meus cálculos inclui a variável agarrar o braço dela para ajudar no impulso. Firmei meu pé esquerdo na pedra à frente para o impulso, e projetei de imediato a perna direita em direção à outra pedra. Meu corpo deixou o local, e ele já estava projetado no ar quando por erro de cálculo ou pela mão maldita do capeta não consegui alcançar o braço da Irene. Estava simplesmente solto no ar. Por uma fração de segundos eu lindamente levitava apoiado ainda pelas mãos de meus anjos, mas uma sirene estridente, fina e aguda afugentou os anjos trazendo um bando de capetas, e desta forma me vi miseravelmente solto no espaço. O grito agudo continuava para alegria da diabada, e eu esperneando senti apavorado que meu esqueleto descia feito um foguete para cima das pedras. Tentei lembrar as lições que tive no Tibete, mas inutilmente tentei. E o ruído sinistro fino de sirene fazia com que meu corpo se projetasse cada vez mais desgovernado. Em questão de segundos meu corpo dançava no espaço projetado para baixo obedecendo cegamente a lei da física. O meu desespero não era as pedras que se aproximavam, mas a sirene que não parava de tocar. De repente, em umas das viradas que meu esqueleto deu no vazio, pude ver, lá para cima na beira da estrada, de mãos tampando a boca, a minha mana Inca gritando feito uma sirene. Ainda tive tempo de gritar: - Pare com essa sirene! E pluft cai de bunda na macies da água. Rolei de pedra em pedra, agora na macies da bunda, e ouvi consolado, ao me levantar lépido no meio do rio, finalmente o último e rápido agudo grito. Tudo se fez num mortal silêncio. E de repente o povo que ocupava a margem do rio aplaudiu pensando que fosse uma performance. POR: MARIO DOS SANTOS LIMA