sábado, 10 de março de 2018

PRIMEIRA ESCRITA A TINTA

No meu tempo de grupo escolar a coisa era bem diferente do que é hoje. Você aprendia o B A BA e a caligrafia já no primeiro ano de aula; era simplesmente com lápis e só depois de você demonstrar certas habilidades manuais com o dito cujo é que passaria a ter direito de escrever à tinta. Escrever à tinta exigia uma parafernália louca de apetrechos e uma atenção do capeta do escrevente. Para a escrita à tinta o vivente tinha que estar familiarizado com estes apetrechos todos como, por exemplo: com um pau roliço, em madeira do tamanho de um lápis, sendo mais grosso na parte de baixo e mais pontiagudo na parte de cima, levando na ponta mais grossa a pena de aço – esta pena, em época ainda mais anterior já foi de ganso, galinha ou peru dependendo da disponibilidade da penosa no momento. É claro que não poderia faltar o encantado vidro tinteiro contendo o líquido, azul ou preto e também não se podia dispensar o salvador mata-borrão. O mata-borrão podia ser sofisticado tal qual um berço de balanço ou poderia ser simplesmente uma folha solta. O escritor à tinta ou de caneta tinteiro, tinha que ter uma expertise a toda prova. Verificava se a pena estava com a abertura melimetricamente suficiente para que a tinta pudesse prazerosamente deslizar pela fresta até a ponta e deitar suave e folgadamente pelo papel ao bel prazer dos movimentos alfabéticos ou numéricos da caneta. Quando vinha a tentação louca de escrever o escrevente mergulhava a pena no vidro tinteiro retirando-a cuidadosamente sem deixar de verificar a quantidade de tinta que ficava disponível na pena. Com um gesto delicado dirigia a pena ao local que iria dar inicio a escrita tendo sempre, na outra mão o mata-borrão para que a cada novo procedimento de mergulho da pena no tinteiro pudesse ao mesmo tempo cobrir a parte escrita com o mata borrão, pressionando-o levemente para que o excesso de tinta fosse delicadamente capturado. Bem, eu estava no primeiro ano e verifiquei que a professora – a gente não chamava de tia a professora naquela época e educadamente se levantava quando ela entrava na sala – como estava dizendo, ou melhor, escrevendo verifiquei que a professora cobria de elogios meus colegas quando eles apresentavam as tarefas com alguma coisa a mais além do pedido: - A classe tem que seguir o exemplo do Pedrinho, pois a ele foi pedido isto e fez mais aquilo, dizia a professora feliz para a sala. Era para o Pedrinho, Toninho, Mariazinha; todo mundo recebendo elogios e eu ainda virgem deste prazer. Tenho que fazer alguma coisa para estar na mídia também! Ficava eu matutando o tempo todo. Todos os santos dias tinha tarefa para ser executada em casa e todos os santificados dias tinha algum colega meu recebendo elogios. Pensei, pensei e acabei por resolver minha angustia e disse para mim mesmo: - Amanhã vou receber estes elogios custe o que custar. Amanhã a sala toda vai saber quem sou eu. Cheguei em casa todo feliz; cantarolando, assoviando. - O que se passa com você guri? Estranhou minha mãe. - Nada não, manhê, respondi para ela colocando meu embornal na mesa, retirando meus cadernos e livros para início da tarefa para o dia seguinte. - Manhê, cadê aquela caneta e tinteiro que o pai escreve cartas pro vô? - No armário, filho... Um pouco de silêncio e ela pergunta: - Mas por que? - vou fazer minhas tarefas. - Mas a professora já te ensinou a escrever com caneta? Perguntou ela admirada. - Sim. Respondi apressadamente. Peguei a caneta, o tinteiro e o mata borrão e comecei a fazer a tarefa. A tarefa era copiar 5 linhas do livro e nada mais. Treinamento de caligrafia e, com certeza com intuito de memorização da grafia de algumas palavras. Levei aproximadamente 3 horas para realizar a tarefa, com a ajuda da mãe e do pai. O pai, de semblante fechado criticava a professora: - Este tempo moderno acaba estragando a criançada. Terminei finalmente e pude dar uma olhadela - só eu é claro, pois o pai e mãe já tinham ido dormir. Fiquei todo orgulhoso de mim e já fui imaginado o grande sucesso do dia seguinte. Todos estariam morrendo de inveja. É claro que pela primeira escrita à tinta todos aqueles borrões e respingos de tinta seriam plenamente desconhecidos. Não fariam diferença alguma. Esta noite nem dormi; Feito uma betoneira me virei ansioso de um lado para outro na cama maçarocando todo o lençol. Na manhã seguinte apenas levantei. Fui o primeiro a chegar à escola. Estava deveras doido para mostrar a minha obra de arte à professora. Chegou o grande momento. Entregamos, um a um as tarefas e a professora, como de costume, pegando uma a uma foi tecendo os comentários e elogios. Pegou a minha... Olhou com um olhar indescritível. Ficou boquiaberta. Mudou de cor. Apoiou-se à mesa para não cair. Transtornada, alucinada gritou para a classe: - De quem é esta coisa aqui? Meu Deus! Com todo o trabalho que tive acabei por esquecer de colocar o meu nome. Aí passou um calafrio pela minha espinha e pensei: - Será que a maldita professora vai deixar de me elogiar só porque esqueci de assinar? Levantei o braço e me coloquei altivamente em pé. – É minha. Soberbamente respondi. Jamais eu perderia este elogio e por alguns segundos fiquei imaginado a professora me levando até a frente da sala dizendo: - O Mario superou todos vocês e de agora em diante ele será o exemplo para todos da sala. E ao dizer isto me abraçava chorando de emoção quando, de repente me vi voltando à realidade com o berro dela: - Quem mandou você fazer esta porcaria? Falou isto, rasgando em mil pedaços a minha tão sofrida obra de arte uivando furiosa tal qual um leão com os grãos esmagados entre dois tijolos. A sala toda tremeu por alguns segundos e eu recebi umas pesadas e doídas reguadas na cabeça e ainda de lambuja fiquei de joelho do lado de fora da sala fazendo a mesma tarefa mas agora a lápis. - Como foi, meu filho? Em casa todos ansiosos queriam saber o resultado de minha arte de escrever a tinta. Até o vizinho veio para conhecer o novo gênio da escrita. - A professora ficou encantada guardando a escrita pra ela, respondi rapidamente indo furioso me trancar no quarto. POR: MARIO DOS SANTOS LIMA

terça-feira, 6 de março de 2018

ADEUS A SERESTA - UM TRIBUTO AO LEONICEO

A noite estava tácita. Uma saudade infinda renascia em cada coração ao toque mágico de um violão distante. De repente uma voz e um violão. Aquela voz de sempre, quase que rouca e cansada de uma alma solitária impregnava o ar de uma melodia sublime que se fazia ouvir atenta aos corações apaixonados. Todas as noites era o mesmo sentimento, a mesma paixão da música dedilhada numa cantilena dorida que se perdia além, muito alem. Mas... Nesta noite foi diferente; quem o ouviu, sentiu apreensivo por certo, como se fosse um triste recado, como se fosse o derradeiro adeus; como se fosse uma despedida. As notas se desprendiam das cordas do violão como lágrimas incontidas. Sua voz melodiosa e chorosa buscava o último alento se perdendo assim na imensidão da noite. A madrugada viera um pouco fria encobrir a terra e de repente tudo é quietude. Funestamente calma – nem a voz, nem o violão a soluçar alhures, reclamando de saudade por alguém talvez que nunca existiu para ele; alguém maravilhoso que somente fosse sonho, somente fosse o castelo mais lindo no desejo romântico do seresteiro – só ele sabia, só ele conhecia e por isto suas serestas eram lindas, melancólicas e cheias de mistério. Por fim, o dia se fez presente e com o dia veio, no embalar do vento a desventurosa notícia. Ele sucumbiu afogado nas águas do rio, afogando quantos corações que choraram desesperados. Quantas lágrimas que escorreram pelas faces mil, pois sabiam que com ele desaparecia uma alma simples, apaixonada e boa; uma alma boêmia que gostava nas boêmias madrugadas sem fim, passá-las em serenata, embebendo com sua música a quantos fosse na amplidão de sua voz. Com ele desaparecia o encantamento desprendido dos sonhos despreocupados de paixões sem fim. Assim, Leoniceo, de onde estiver fique sabendo que agora aqui existe um vazio enorme, como uma chaga invisível, nas noites enluaradas das madrugadas sem fim. Existe também um violão calado a um canto, triste esperando a sua impossível volta – Ele não entende e nem pode compreender que você definitivamente não voltará jamais. E você foi calado para sempre, sem despedidas, sem flores como se não quiséssemos ouvir mais as suas serenatas; como se não entendêssemos as suas angustias. Não, muito ao contrário, éramos apaixonados pelas suas serenatas e agora sentimos sua ausência. O rio egocentricamente abraçou você e o levou para sempre. Agora nada mais, apenas uma sepultura fria e o vento choroso numa falácia tristonha que passa melancólico soluçando na madrugada imensa que não termina mais, como que reclamando quisesse ouvir ainda mais uma vez a sua voz... E há de soluçar sempre, pela vida afora, nesta saudade impossível que jamais voltará. No entanto, há de ficar nos corações daqueles que o conheceram, como uma lembrança carinhosa as serenatas lindas que não mais serão ouvidas. POR: MARIO DOS SANTOS LIMA