sábado, 31 de maio de 2014

INJEÇÃO RADICAL

Não tem este ou aquele filho de um deus despreocupado, que não morra de medo da maldita agulha da injeção. É preferível mil vezes a morte que sentir aquele metal, arredondado, cumprido, cuspindo remédio pela boca, entrando rasgando a nossa pele. - Tomou onde? É uma pergunta cretina e sacana, que quando você retirava o esqueleto da maldita sala de vacinação o filho de uma puta sempre perguntava sorrindo. Em casa, quando ainda guri, meu pai e minha mãe se encarregavam de nos espetar com agulha quando a gente apresentava algum desvio de saúde. Eles tinham o instrumento de tortura que herdaram nem sei de quem. Era uma caixinha retangular, tipo estojo com tampa, em alumínio onde se acomodavam o cilindro, o êmbolo e a agulha. A caixa em alumínio já servia para esterilizar após as aplicações. Hoje tudo é descartável, mas no meu tempo de moleque o aparelho infernal de amedrontar, principalmente as crianças, era eterna. Este aparelho torturador veio de herança provavelmente de meu avô, pai de meu pai. Era uma agulha especial inglesa que já havia perfurado muitos e muitos braços e bundas por varias gerações. Quando era para me submeter ao aparelho de tortura eu preferia a minha mãe. Ela tinha a mão mais leve e a agulha não feria tanto. Meu pai era um carniceiro, chegou uma vez entortar a agulha na frágil carne de minha nádega. Um dia a minha mana Laura, não muito bem de saúde, tinha sido condenada pelo médico a se submeter a uma seção de tortura injetável a base de penicilina. Meu pai preparou tudo e lá estava o aparelho de injeção se deliciando, folgadamente nadando na sua banheira em alumínio, em agua fervente, em cima da chapa do fogão de taipa. Olhava para a Laura que choramingava a um canto e dizia aos risos: - Vou penetrar em você! Vou rasgar sua carne! Vou beliscar sua bunda! A condenada maninha gritava desesperada: - Não, isso não! Eu prefiro morrer. Minha mãe, muito ocupada, transferiu a seção de tortura para meu pai. Meu pai preparava pacientemente a injeção. Pegou o algodão com álcool e tentou segurar minha irmã. Quase conseguiu. Ela estava deitada de bruços em seu colo, e quando sentiu o lamber gelado do algodão em sua bunda gritou, num grito agoniante, tal qual um decapitado ao sentir a lâmina da guilhotina cortando seu pescoço. - Nãoooooooooooooo! Espernegou-se toda feito frango destroncado, e como um quiabo ensaboado desprendeu-se de meu pai. Vazou pela porta, e feito um foguete com o rabo em chama, tomou rumo da rua. Meu pai com a injeção em uma das mãos e com outra ocupada com o algodão embebido em etílico saiu no encalço dela, e aos gritos tentava convencê-la: - Volte aqui filhinha! Não vai doer nada! A Laura, completamente surda às promessas do pai e aos gritos abriu o portão, passou a pinguela que se debruçava sobre enorme valeta e ganhou a rua. Meu pai, bom das pernas, em correria também, quase chegando perto dela, gritava: - Espere! Não corra! A cena era dantesca. Quem de longe olhasse, por certo tomaria como um homem de punhal em mão tentando apunhalar pelas costas uma indefesa e inocente criança que corria doidivanas. A Laura gritava - Não meu pai! Eu não quero! Eu já estou melhor! E a injeção às gargalhadas cuspia remédio pela agulha, e o algodão babava álcool. A Laura apavorada gritava. A vizinhança apenas olhava e ria do espetáculo. Ninguém se atrevia em salvá-la, e isso a deixou puteada. O anjo da guarda não querendo se meter no processo ficou do outro lado da rua rindo daquilo tudo. Mas o capeta, querendo mais confusão acompanhava a Laura direcionando seus passos. Eis que na frente, no terreno baldio, o diabo mostrou a moita como salvação para ela. Ela, em desespero, tentou se embrenhar nela, mas ficou toda enganchada, ensanguentada nos espinhos do pé de arranha gato. - Ai! Foi o berro que se ouviu nas cercanias quando a agulha penetrou a sua bunda. POR: MARIO DOS SANTOS LIMA

domingo, 25 de maio de 2014

UM SUICIDA AZARADO

Era um corpo em mergulho que dava corpo a este melodrama fugaz. Por certo, em algumas situações você ouviu o maldito dito popular: - “Quando urubu está de azar o debaixo caga no de cima”; mas, mais urucubaca que a falta de sorte do suicida que quis passar desta para outra vida, nunca vi. O Urubilino – Eita nome filho de uma puta – Bem, ele veio a esse mundo para mostrar aos outros viventes como este mundo, muitas vezes, é cruel. Nasceu tronchado de corpo e pernas, caolho e meio abobado para completar a desgraça. A mãe, prostituta de carreira abandonou-o na privada. Foi adotado por um aleijado que fazia dele sua muleta a fim de arrecadar dinheiro nas portas das Igrejas. Cansado da exploração do aleijado fugiu pelo mundo. Nasceu analfabeto e milagrosamente continuou analfa porque a escola o rejeitou entendendo que ele estaria mais para uma jaula que para uma escola. Na rua servia de chacota da molecada. Num concurso de beleza entre ele e o Frankenstein o monstro seria galã da novela das oito. Porque a mãe era prostituta e ele todo encangado não pode ser batizado e proibido de entrar na Igreja. Foi considerado pela comunidade como filho do diabo, porque seu pai, o capeta, fez do prostíbulo o inferno cruzando sexualmente com sua puta mãe. Que ele era todo desfigurado, isto lá era verdade, mas tinha um coração que pulsava triste em seu peito, apercebia-se das coisas e isto o chateava tremendamente. Toda esta chacota feria-o profundamente. Para amainar sua fome, na calada da noite, tal qual um cachorro vadio e sarnento, ia revirar os lixos para catar o que comer. Banho era um luxo, e só quando chovia. Dormia onde dava e quase sempre era expulso a tiro ou a pedradas. A infeliz criatura um dia se deu ao desgraçado luxo de gostar de uma garota, só porque ela lhe deu condoída um pedaço de pão. Dia após dia, meses e meses, e o tempo todo lá estava ele perdido em doce ilusão com esta linda menina no seu coração. Mas um dia... Lá na porta da Igreja saindo nos braços de um homem a noiva linda, sorridente e feliz. Sua vida terminou ali. Era ela a doce menina do seu coração que o abandonou por um outro ser. Contristado voltou para seu esconderijo resolvido a dar fim a sua vida. Arquitetou o plano. Pegou uma corda e uma lata de veneno. Caminhou ruma ao rio. Escolheu uma árvore e selecionou um galho que tentava cutucar as águas do rio. Chorando copiosamente amarrou cuidadosamente a corda. A árvore apreensiva conversava com o rio. - Este cara vai fazer merda! O rio e a árvore tentaram, em muitas conversas, tirar do Urubilino desta funesta ideia, mas nada disso surtiu efeito. Lá estava ele na ponta do galho colocando a corda no pescoço, Segurando cuidadosamente a lata de veneno. Não rezou porque ninguém o ensinou e nem pediu nada a Deus porque não o conhecia, mas seu pai, o capeta estava ali ajudando na execução do processo mortífero. - Maldito mundo, ponho fim a minha vida e ao meu sofrimento! Gritou isso com todos os pulmões, degustou a lata de veneno, colocou a corda no pescoço e se jogou. Tudo a sua volta parrou contemplando horrorizada aquela cena dantesca. Era um corpo em mergulho que dava corpo a este melodrama fugaz. Ouviu-se um galho quebrando, e em seguida o som do baque de uma massa corpórea nas águas do rio. Debateu-se feito um doido, e afundou; Debateu-se, mais e mais, desesperadamente, e novamente afundou. Seria mesmo o fim desta criatura? Mas... Alguém que passava retirou-o quase afogado do rio. Vomitou o resto do veneno que tinha no estômago e hoje, amaldiçoando seu salvador, vive feiamente por aí como dantes POR: MARIO DOS SANTOS LIMA

domingo, 18 de maio de 2014

UMA CASA SURREAL

Você é um abestado se pedir para uma virgem que explique em detalhes como é a dor do parto; é o mesmo que perguntar para um representante nosso no governo o valor exato do salário mínimo. Isto é inócuo, pueril e vexatório. Quem faz é aquele que sabe! Meu filho, o Conde Baltazar, deliberou com ele mesmo, que o mundo é muito complexo e aparentemente sem sentido e absurdo. Resolveu então dar significado a sua vida e vive-la de maneira sincera, pura e selvagem construindo tão e simplesmente uma cabana no meio da floresta. Foram tantos os conselhos meus, mas contra argumentados fortemente pela sua axiomática fé e inabalável decisão de seguir em frente com seu projeto salvador da vida. Queria com isso, de qualquer forma, chegar a uma vida gratificante, saudável, ultrapassando para isso qualquer obstáculo que se opusesse. Não valeram meus insistentes apelos nem minha experiência. Ele se jogou de corpo e alma na realização de seu inocente sonho. Para fugir do arquétipo mundo nojento e cheio de amarras resolveu ser simples, e ele mesmo construir o que ele chamaria de berço natural e livre da natureza. Foram muitos dias de árduo trabalho para abrir uma picada na mata densa, e ao final dela uma clareira. Dias e dias batalhou, suou a cântaros, criou calos doloridos nas mãos, e aos poucos se rendeu vindo pedir arrego e algumas sugestões. Ajudei logisticamente na compra do material que faltava e dei alguns conselhos práticos: - Não se esqueça do plumo, nível e esquadro na hora da construção. Tentou iniciar a obra. Só tentou. Vencido pela pouca experiência em construção, pediu arrego a um assentador de pedras. Por sinal, vi alguns trabalhos em pedra desse artífice e me rendi ao capricho dele. - Ele vai assentar as pedras e levantar para mim as paredes. - Mas meu filho! Comentei preocupado com ele. - Ele é um artista da pedra e não da madeira. Tão pouco ligou para mim. A casa foi construída. Pequena, singela, mas infernalmente radical. Um artista surrealista jamais usará um esquadro, plumo ou nível em suas obras. Incrivelmente a casa existe. Para quem olha de longe é uma verdadeira pintura surrealista – Bisonha, irreal, exótica plantada disforme no meio da floresta. Eu acho que o Conde Baltazar não concorda mesmo com nada deste mundo, pois acabou transgredindo ao por violentamente as leis de Newton em xeque. A casa projetada para ser uma figura retangular acabou sendo um trapézio. As paredes que eram para ser perpendicular ao eixo do horizonte acabaram pedindo arrego, inclinadas para deitar. Mas esta casa existe e resiste. Está lá soberba e amparada. Permanecerá de pé, gloriosamente grotesca, enquanto as quatro árvores que a sustentam não forem abatidas. POR: MARIO DOS SANTOS LIMA

quarta-feira, 7 de maio de 2014

CARTA PRO MEU PAI NOS SEUS 99 ANOS

- Meu querido e amado pai Francisco! Respeitosa e humildemente beijo-lhe a mão. Todo o amor que devoto ao senhor será sempre insuficiente para mostrar à eterna gratidão pelo pai amoroso, desvelado, respeitoso e exemplar que tive, e que por uma benção especial de Deus ainda tenho. Não me canso de agradecer ao nosso Criador pelo maravilhoso e inestimável presente em mantê-lo entre nós, assim tão lúcido e capaz aos noventa e nove anos. Aqui no meu canto, tão longe daí, fico muitas vezes matutando, e assim me perco num passado gostoso, aprazível e distante de minha infância querida. Recordo-me do pai atencioso, afável e preocupado com seus filhos; Vejo-o amoroso, com devotada proteção, cercando de mil cuidados, conversando com minha mãe. Meu querido e amado pai, quantas vezes ao falar em público, citando o exemplo forte de um homem que admiro, que venero, e que me acompanha, passo a passo, na minha vida, vem alguém fascinado curiosamente perguntar: - Quem é esse homem maravilhoso? Diga por favor! E eu então, todo orgulhoso, estufando o peito não me canso de falar. Ele é o homem em que me espelho, é o meu eterno guru, que soube me educar, e que tem uma vida exemplar, impecável, para eu seguir. É o homem que soube mostrar o que é o amor e o carinho por uma mulher, respeitando e amando gentilmente minha doce mãezinha. É o homem que me ensinou, com sua paciência e exemplo, como educar um filho; Nunca nos confundia com suas determinações, pois seu sim era sim e seu não era não. Aprendi com ele a ser um pai presente. Quantas vezes vi meu pai quase esmagado pela multidão, de pescoço esticado só para me ver marchando em desfiles comemorativos pela escola. Naquele momento eu queria parar o desfile, e gritar para todo mundo ouvir, apontando para aquele gigante, de bigode preto, bem alinhado, esticando-se todo para me ver: - Aquele ali é meu pai! Aquele é meu pai! Sufocava meu grito, enxugava minhas lágrimas e todo garboso, marchava firme, batendo mais forte ainda meu pé ao som dos tambores, sabendo que meu pai me seguia com o olhar. Aprendi, pelo seu exemplo, o ato nobre da caridade. Quantas vezes o acompanhei nas caminhadas longas de domingo, após a missa, para visitar famílias e pessoas necessitadas. Sou testemunho, me comovendo com a alegria das pessoas quando ele chegava. Pacientemente ele ouvia cada um, anotava e aconselhava confortando suas penúrias. Distribuía o que era necessário, orientava a regularização de documentos e encaminhava os doentes ao médico. É o homem que pelo seu modelo de vida me ensinou a respeitar os mais velhos, os animais e a natureza. Foi ele que me ensinou a magia da leitura. Orgulhosamente sou professor de tanto ouvi-lo dizer para nós: - O professor tem nessa terra uma missão divina! Temos que ouvir, respeitar e seguir seus conselhos se pretendemos ser alguma coisa na vida. Foi ele que nos ensinou que o presente de Natal não é o Papai Noel que nos trás. Pela magia da primeira estrela que surge no céu, o presente aparece ao lado do presépio, enquanto contritos, ajoelhados, rezávamos o Pai Nosso no pedido de misericórdia pelos inocentes pecados cometido. Nada o deixa triste! É temente a Deus e de uma fé inabalável. Quando moleque nunca o vi chorar, mas um dia estas lágrimas apareceram e apareceram em profusão. Sua irmã Judith desenganada pelos médicos entregava, pouco a pouco, sua alma a Deus e então esse grandioso homem despencou em lágrimas, o vi chorar pela primeira vez copiosamente. Estas lágrimas abriram caminho para outras tantas. Quando minha mãezinha faleceu eu vi, contristado, muitas lágrimas lavarem o seu rosto envelhecido ao lembrar com saudade da sua companheira de tanto tempo, de tantas lutas, de tantas realizações. As pessoas se encantam ao me ouvir contar isso com tanta emoção, e muitas vezes comentam: - Você é abençoado por ter um pai assim! Quem me dera ter um pai igual a esse fabuloso homem! Ah! Meu lindo pai, meu querido índio velho, tenho tantas lembranças suas de quando era menino que se narradas todas daria um enorme livro. Algumas são fortes e que me parece aconteceram ontem. Por exemplo, aos domingos no programa da rádio Nacional “Quando os ponteiros se encontram” lá estava você todo, atento de ouvidos pregado no rádio, para ouvir o rei da voz Francisco Alves. Tomei gosto pela música e admirava o cantor das multidões. Vi sua fisionomia contristada em setembro de 52 quando o cantor morreu em acidente. Fiquei triste também. Meu querido e amoroso pai, só tenho boas lembranças suas. Hoje, me achego através desta carta para respeitosamente beijar sua mão e pedir uma benção muito especial, para este filho que o ama, que o venera e o admira muito. Parabéns pelos seus bons, graciosos e lindos noventa e nove anos. POR: MARIO DOS SANTOS LIMA