terça-feira, 25 de dezembro de 2012

UM MENDIGO FELIZ NUMA NOITE TRISTE NATAL

Lá estava ele, como sempre esteve em todos os santos dias, acomodado sobre papelões velhos, ensebados e encardidos, sob a marquise daquele velho prédio. Não entrava nele porque as portas foram atijoladas. Comia restos que colhia aqui e acolá ou que alguma alma caridosa lhe viesse servir. Cabelos brancos, sujos e em desalinho que caiam mal cortados pelo rosto sulcado e pelos ombros arquejados, davam-lhe um aspecto mais envelhecido do que era. Acreditava em Deus, e em suas preces almejava um dia passar um natal em família. Queria ser adotado por apenas um dia, e sentir o prazer da magia da noite de natal. Não conheceu o pai, e sua mãe? bem, era uma prostituta, morreu quando ele era ainda pequeno. Viveu sempre na rua . Fisicamente era feio, mas, creio eu, que por dentro era uma boa alma. Nas noites que antecedia o natal, o piscar das luzes das árvores e dos enfeites das casas exercia nele uma magia inexplicável. O que mais lhe tocava o coração era ver as crianças correndo felizes para o abraço de seus pais. Ele nunca fora abraçado por ninguém. Ficava ali sentado, matutando e se vendo feliz no meio daquelas famílias. Se lhe dessem a oportunidade para escolher um presente ele pediria apenas um abraço. Este era o presente que mais desejava na vida. Na noite em que antecedeu o Natal, já quase adormecendo, após suas suplicantes preces, a esse Deus que ele nunca viu, mas que acreditava existir em algum lugar, percebeu que alguém vinha caminhando em sua direção. Envolto em luz, e com sorriso maravilhoso, foi se achegando. Colocou-se de joelho, para ficar da mesma altura, e colocando sua mão no ombro dele disse: - Vim lhe dar um abraço e desejar uma boa noite, e um feliz natal. Fez o mendigo se levantar e num amplexo divinal permaneceram por longo tempo entrelaçados. E a divinal criatura completou: - Agora você deve ir a cada casa e dizer que você é o próprio Jesus; Peça para entrar e ficar um pouco na festa que celebram para você. O mendigo não conseguiu entender e respondeu - Mas como eu, um pobre mortal, insignificante criatura possa ser Jesus? - Apenas faça o que digo. A criatura foi se afastando aos poucos e desapareceu mais adiante. Entre admirado e incrédulo resolveu fazer o que a divinal criatura lhe tinha pedido. Nunca tinha feito isto antes, abandonar o seu próprio território, mas criou coragem e foi. Bateu palmas na primeira casa e um casal atendeu, com a porta entre aberta perguntando. - O que você quer? Não temos nada! - Sou Jesus e vim para a minha festa! - Some daqui! vamos chamar a polícia. Foram muitas as casas e muitas foram as ameaças. Na última tentativa, da casa surgiram duas crianças que vieram inocentes, contentes perguntar o que ele queria. - Eu sou Jesus e vim para a festa que estão celebrando pelo meu nascimento. As crianças felizes correram para casa, e puxando o mendigo pelo braço gritavam. - Mamãe, papai Jesus está aqui. Ele existe e veio festejar conosco o seu aniversário. Na porta de entrada estavam o pai e a mãe que recolheram de imediato as crianças, e dando uma descompostura, puseram o mendigo prá fora do portão. - Mas pai, ele é Jesus e veio para a festa dele. - Deixem de besteira, ele é um vagabundo que vive na rua. - Mas ele é Jesus, ele disse para nós, insistiram as crianças. - Vocês acham que Jesus é tão feio e mendigo? e bateu a porta com violência. Ele ainda conseguiu escutar estas últimas palavras. Ficou triste e foi se embora. Já era madrugada, e ainda em muitas casas a festa continuava. Num caminhar desolado foi chegando ao seu canto que num canto deste recanto era o canto maravilhoso que tinha. Comeu alguma migalha que lhe restava e repartiu este pouco com o cachorro vadio que se achegou. Adormeceu feliz lembrando do único abraço que tinha recebido em toda sua vida. Sentia ainda o calor dele. No dia seguinte a Prefeitura recolhia um corpo inerte, mas que trazia estampando no rosto um belo sorriso. POR: MARIO DOS SANTOS LIMA

domingo, 9 de dezembro de 2012

UM AVIÃO ATEU OU NACIONALISTA

por: Mario dos Santos Lima Eu só preciso confirmar a data, mas isto não vai invalidar o que vou narrar aqui. Vou registrar, então, que foi em 1918. A Europa vivia numa situação econômica extremamente adversa, imersa na pobreza com grandes conflitos, intolerância religiosa e sob a pressão do nacionalismo irracional, aforante, é claro, a guerra. A pequena cidade de Maria Augusta, próspero porto do Rio Iguaçu, crescia harmoniosa sob a batuta dos imigrantes, principalmente poloneses que vinham fugidos das agruras de seus países de origem. Vinham em busca do paraíso para seus familiares. Vinham despidos de tudo, trazendo apenas seus conhecimentos, suas práticas e uma vontade ímpar, próprio dos primeiros empreendedores. Eram, na sua grande maioria, católicos, e extremamente religiosos respeitando as tradições, costumes e ritos do catolicismo. A sexta feira santa era o ponto alto da servidão a Deus. O povo vestia a melhor fatiota, enfeitava suas carroças, seus cavalos e vinham com a família para a cerimônia e procissão do senhor morto. Naquele tempo as formas de diversão não eram tão perigosas quanto as que existem hoje. Rachas e outros esportes radicais ainda não faziam parte do cotidiano da simplicidade da cidade, mas existia na época um sujeito, que por certo forçou a coisa, lá no além com os espíritos, e acabou nascendo fora do tempo dele. Nasceu muito antes, e aprontou e se deu mal. Ele gostava de brincar e se divertir com a forma simples e natural de viver do povo. Foi piloto de guerra, mas um acidente fez com que ele recebesse baixa e voltasse puto da vida para casa. Para ele a guerra era um esporte para lá de radical. O filho de uma puta, que Deus o tenha agora em um bom lugar, não chegou a viver para ver o final da primeira grande guerra mundial. Sexta feira da paixão. A cidade se aquietou e se vestiu de luto pela morte de Cristo. Nas Igrejas os santos se cobriam de roxo e o povo, falando baixinho, contritos se aglomeravam ao lado da Igreja para a procissão. E a procissão saiu da porta da capela para percorrer algumas ruas e retornar a Igreja. O piloto era ateu e detestava esta quietude. Detestava a cidade vestida de luto. Resolveu dar um corretivo no povo. Arquitetou um diabólico plano e enquanto o revia se divertia com antecedência. Emprestou um teco-teco de um amigo que conheceu na guerra e deixou-o preparado para a cerimônia da sexta feira santa. Faria vôos rasantes sobre a procissão para ver os cavalos em disparadas e o povo em polvorosa. A cidade toda compareceu. Com velas nas mãos, muitos com lágrimas nos olhos, contritos acompanhavam a procissão. De repente, quebrando aquele sacro-santo momento, ouviu-se o ronco de um motor de avião. A concentração já não era a mesma e os fieis, com seus semblantes carregados, demonstravam contrariados com aquilo. O avião fez um rasante quase decepando as cabeças dos cavalos e das pessoas. O povo se dispersou mudando o tema da oração - rogavam pragas e amaldiçoavam o piloto. O padre arregaçou a batina e bateu em retirada. Os cavalos assustados, em disparada, relinchando desesperados levavam atrás deles as carroças vazias. Abandonaram o esquife no meio da rua, e Jesus não teve outro jeito, saiu correndo também. A balburdia estava implantada. O avião fazia os rasantes e dava para ouvir as gargalhadas do energúmeno e encapetado piloto. Muita gente se jogou ao chão imaginando que os terríveis nacionalistas húngaros estivessem ali para dizimá-los. Foram momentos cruéis - ronco do avião sem o silencioso, relinchos, gritos e barulhos das carroças se quebrando. De repente um estrondo. Seguiu-se um silêncio sepulcral. Lá na esquina, em meio a uma intensa poeira, um avião beijando o chão era consumido por labaredas enormes que subiam altas lambendo o céu. Cristo voltou, deitou no esquife, e o povo retornou à cerimônia.

sábado, 8 de dezembro de 2012

MIJANDO NO BALCÃO DA PRIVADA

Bem, antes de escrever a minha crônica acho legal dar uma voltinha pelo mundo nojento da latrina para saber como foi sua merdamorfose desde os primórdios. A história das privadas é bem mais velha do que se pensa. Com certeza tem a mesma idade do aparecimento do homem no planeta terra, e é por uma razão muito clara, pois o primata, como qualquer vivente deste pontinho do imenso universo, tinha e tem para sobreviver que comer, beber, e por necessidade fisiológica, logo a seguir, tinha e tem que esvaziar o tubo digestivo e o condutor urinário. Fazia a coisa ali na caverna mesmo. O mau cheiro provocado pelo bolo fecal e urina obrigou os primeiros habitantes da terra a ir atrás de algum local adequado, fora e afastado da caverna para depositar esta coisa nojenta e mal cheirosa. Resistiram no começo, mas começaram a praticar a coisa a céu aberto. Começaram a defecar em terreno seco e plano perto do seu habitat, mas logo perceberam que era além do incomodo, aquela coisa começava a ocupar um espaço muito grande do terreno. Quando iam caçar ou lutar acabavam pisando ou escorregando nos excrementos. Experimentaram fazer a defecção então nas grandes elevações que havia por perto e constataram (talvez aí esteja o início da pesquisa científica) que as fezes rolavam morro abaixo e eram depositadas tranquilamente ao sopé da montanha. Evidenciaram logo a seguir que esteticamente não era bom alem do que, o sacrifício de subir o morro, principalmente para os mais velhos e doentes era fatigante. Cansativos estudos e muitos debates na caverna acabaram por descobrir os atributos do rio e como alguns ensaios deram positivos resolveram então fazer a coisa nojenta na água corrente. Aproveitavam sempre algum tronco de árvore caído sobre a água. O som do pluft do dejeto mergulhando na água para nossos antepassados era muito engraçado e curioso. Existem relatos destes episódios gravados em muitas cavernas. Tão logo o troço era conduzido pela correnteza aproveitavam para lavar a bunda. Isto ficou usual por longo período da história, (Com certeza desta prática surgiu o bidê, bacia oblonga que hoje serve para lavar as partes inferiores do tronco) E o mundo foi evoluindo a passos largos, e a merda se avolumando nos rios. Tal qual um formigueiro na terra o número de habitantes foi crescendo violentamente, mas a prática de defecar no rio continuou, e isto acabou por contaminar seriamente as águas. Então começaram longos e profundos estudos a fim de desenvolver formas e mais formas de depositar os excrementos fora dos rios. Começou então o nascimento dos esgotos. Se formos voltar ao tempo verificamos que já há 4000 anos antes de Cristo na Mesopotâmia se tem início a construção do sistema de irrigação. A irrigação tanto era para separar a água que conduzia os dejetos da água que era destinada a irrigação das plantas. A história está cheia de relatos da preocupação do povo com a merda. Até que na Alemanha os políticos bundas sujas não agüentando mais o rio Danúbio fedendo e transportando aquela sujeira toda, pelos idos de 1500 obrigaram o uso de fossas sanitárias. O aparecimento da água encanada e das peças sanitárias com descarga hídrica fez com que a água passasse a servir com uma nova finalidade: afastar propositadamente dejetos e outras impurezas indesejáveis ao ambiente de vivência. A sistemática de carreamento de refugos e dejetos domésticos com o uso da água, embora fosse conhecida desde o século XVI, quando John Harrington (1561-1612) fez um manual de procedimentos de uso ao instalar a primeira latrina no palácio da Rainha Isabel, - esta latrina não tinha descarga, pois era instalada diretamente em cima de um córrego - sua disseminação só veio a partir de 1778, quando Joseph Bramah (1748-1814) inventou a bacia sanitária com descarga hídrica, inicialmente empregada em hospitais e moradias nobres. A generalização dos sistemas de distribuição de água e as descargas hídricas para evacuar o esgoto, provocaram a saturação do solo, contaminando as ruas e o lençol freático. Como nem todos poderiam ter um córrego debaixo da bunda a coisa foi resolvida com valetas que conduziam as porcariadas pelas ruas. A extravasão para os leitos das ruas criou, também, constrangimentos do ponto de vista estéticos, levando a necessidade de criação de esquemas para limpeza das vias públicas das cidades grandes. Na realidade a invenção das tamancas foi exatamente para que as pessoas ao andar pelas ruas pisando nos troços não sujassem os pés. No Brasil a coisa aconteceu pelos idos de 1850 no Rio de Janeiro. Como os vasos e sistemas de esgoto eram todos importados da Inglaterra o povo brasileiro resolveu de uma maneira bem mais simples a coisa. Fazer um buraco e construir em cima uma pequena casinha para evitar olhares curiosos quando o indivíduo estivesse fazendo aquelas caretas todas tentando dar saída ao quibe. No início era apenas um buraco com um pedaço de pau atravessado onde os necessitados se equilibravam de cócoras. Como era freqüente o desequilíbrio e os indivíduos irem se misturar com as fezes no fundo do buraco resolveram construir um assoalhado com uma pequena abertura por onde as fezes eram despachadas. Para maior conforto, tempo mais tarde pensando num lugar mais reservado levantaram paredes. Normalmente a casinha era em madeira com uma porta. Seu tamanho não passava de um metro por um metro. Sempre coberta em telha para evitar que quando alguém estivesse no sufoco alguma chuva repentina não viesse esfriar os seus intentos. Como a privada sempre foi um lugar ideal para pequenas leituras e a posição “de cócoras” jamais foi a mais apropriada para tal prática lá se foram horas e mais horas de estudos e pesquisas ergonométricas para se chegar à construção do balcão de assento. O balcão era como se fosse um banco com um orifício de certo tamanho que não permitisse você ser engolido pelas ancas, mas, por outro lado que permitisse perfeitamente que os excrementos fossem transferidos e depositados no buraco. A privada, ou a casinha como usualmente e carinhosamente era chamada tinha seu lugar reservado no fundo do quintal – longe da casa e longe do lençol freático. A casinha de nossa casa era por demais cuidada. Minhas irmãs mantinham-na areada e lavada todos os dias. O assento do balcão era uma belezinha. Era como se fosse a mesa da cozinha de tão limpa e asseada. Tinha uma razão para isto, meu pai quando chegava para o café da tarde gostava de ir até lá para ler algumas notícias enquanto fazia suas necessidades fisiológicas. Com aquela limpeza toda, meu pai se sentia a vontade tal qual um rei no seu trono. Este cerimonial para meu pai era sagrado, acontecia todos os dias. Minha tarefa caseira era recolher lenha e tirar água do poço. Tinha verdadeiro pavor e ojeriza só em pensar de lavar a privada, e ficava puto da vida quando me locomovia para a casinha minhas irmãs em coro me diziam: - não vá mijar no balcão; Se mijar vai limpar. Todo dia era a mesma ladainha quando para lá eu me dirigia: - não vá mijar no balcão; não vá mijar no balcão. Certo dia, logo após o almoço quando as manas terminaram a famosa limpeza da privada lá vou eu para fazer minhas necessidades e ainda ouço as duas gralhando no meu ouvido: - Não vá mijar no balcão; não vá mijar no balcão. Entrei, fechei e taramelei a porta; Lá dentro desabotoei a calça e saquei o bruto e mirei no buraco do assento do balcão e escutei, puteado como um eco: - não vá mijar no balcão, não vá mijar no balcão – por momentos isto foi atormentando minha cabeça; fui ficando alucinado e não tive dúvida, deixei que a urina corresse solta de um lado para outro balançando freneticamente o meu órgão mijador; Quase tive um orgasmo, mas saí satisfeito de dentro da privada, vendo o assento do balcão todo urinado; Aquilo foi a minha vingança. Sai satisfeito, mas fiquei logo em seguida deveras preocupado quando vi meu pai chegando para o café da tarde. Rezei para todos os santos do céu e para Deus para que meu pai naquela hora, num lampejo de amnésia esquecesse a leitura do jornal e não tivesse vontade de ir até a privada. Os malditos santos estavam ausentes e Deus, para me sacanear por certo se pôs do lado de minhas irmãs. Fiquei atrás do galinheiro espiando apreensivo o meu pai que a passos largos, de jornal na mão encaminhava-se ao destino privado. Eu queria que alguma coisa acontecesse neste percurso. Alguém que chamasse; Um tropicão e meu pai caindo; Que a vontade dele de ler e ir ao banheiro passasse enfim que alguma coisa ocorresse e impedisse de chegar naquele momento na casinha. Fui olhando seus passos e apavorado vi que a distância entre ele e a latrina foi rapidamente diminuindo. A cada passo que meu pai dava meu coração acelerava mais e mais. Ah! Se uma onda de calor violenta viesse nessa hora secar a urina que depositei em cima do assento do balcão. Quando já estava levando a mão para abrir a porta, quis gritar por socorro para que ele viesse me acudir, mas meu grito ficou sufocado na boca. Fiz o sinal da cruz quando meu pai abriu a porta, entrou e imediatamente saiu gritando: - Quem fez esta sujeira toda no balcão da privada? Seu grito foi ouvido do outro lado da cidade e o povo em pavoroso saiu pelas ruas. As gotas de urina que restaram na minha bexiga acabaram se acomodando na minha calça. Não sei se meu pai ficou zangado por não ter podido ler o jornal sentado prazerosamente naquele assento da privada sempre limpo ou por não ter sido ele o primeiro a mijar em todo o balcão; Só sei que me deu uns safanões e me fez como escravo lavar a maldita privada e ainda por cima ouvindo minhas manas às gargalhadas em coro gralhando: - Eu disse, não mije no balcão. por: Mario dos Santos Lima

domingo, 2 de dezembro de 2012

O BÊBADO E O BURACO

Eu acho que o bêbado, de um modo geral tem, ao lado dele, um séquito anjo da guarda zeloso e de muita habilidade. Por certo este anjo deve ter sido um bêbado qualquer, quando em vida encarnado, e quando morreu, Deus arrumou para ele, como função obrigatória um serviço social - a servidão junto aos bêbados vivos - como forma para que ele possa pagar os pecados do tempo em que viveu encharcado. A cidade não tinha calçada e muito menos calçamento nas ruas. O aguaceiro que tinha descido do céu, finalmente deu uma trégua, mas o lamaçal infernal, pegadiço e escorregadio que ficou estava presente para o bailado dos menos avisados. A tarde se mostrava cansada, e perdia o brilho rapidamente desmaiando no horizonte. A conversa na esquina era, entre muitos deliciosos assuntos, com certeza, uma crítica ferrenha ao mandatário da cidade, principalmente porque o filho de uma puta não punha calçada e pavimentava as ruas. Era uma vergonha o estado lastimável do lugarejo. Com a chuva o lamaçal se fazia presente, e com a seca aparecia a poeira castigante. Embora o lamaçal não fosse de todo ruim, visto que se apresentava como um delirante palco de danças e imundície para quem estivesse vendo, proporcionava prazer. Sempre tinha alguém que entrava desavisado em cena, muitas vezes de passos curtos, medrosos, mas que de repente, como se estivesse recebendo uma entidade qualquer, começava a executar uma dança completamente maluca. As pernas se desencontravam, e os braços tentavam a todo custo planar, mas o corpo, num desequilíbrio infame levava pernas e braços a chafurdar no lamaçal. Suspense da platéia no momento da ação, mas muito riso na seqüência ao ouvir os palavrões do inconformado enlameado. De repente paramos o bate papo para observar alguém especial que entrava em cena. Estava a uns cinqüenta metros e vinha em nossa direção. O borracho era de todos conhecido. Vinha milagrosamente equilibrado num zigue zague danado. Dava dois ou três passos para frente e como se perdesse a força voltava um passo para trás. Parava, dizia alguma coisa em alta e descontrolada voz, respirava, reclamava, dizia coisas desconexas e novamente o mesmo processo. A calçada era estreita para a situação dele, mas o equilíbrio era inenarrável. Parecia uma marionete, de pernas e braços moles, mas sempre de pé. Com certeza o anjo dele deveria estar movimentando as cordinhas. Ele se aproximou. Apagamos os cigarros pelo perigo eminente. No zigue zague e no vai vem dos passos parou junto do grupo. Estava tão encharcado que simplesmente não nos enxergou, e ficamos momentaneamente embriagados. Logo a frente tinha uma enorme valeta e um bueiro a céu aberto. Uma prancha de madeira servia de pinguela para atravessar a vala. Olhamos a valeta, olhamos o bêbado e se entreolhamos e sem que ninguém tivesse combinado coisa alguma, partimos para segurar o infeliz. Foi inútil! Lá foi cambaleante o tonel. Parecia ter adivinhado as nossas intenções e por isso ganhou força, e mirando a pinguela passou célere por ela como banana na goela de velho. Em coro dissemos: - O anjo deste filho de uma puta é poderoso mesmo! Ao atravessar a ponte foi parar no meio da rua. Balançou de um lado para outro. Gritou, resmungou, cantou alguma coisa. Ficou como que plantado ali. Eu acho que o anjo dele acabou se borrando todo, e por momentos, pegou algum cantinho para se limpar, e aí então a coisa se desgovernou completamente. Com a ausência momentânea do anjo o corpo ébrio perdeu completamente a noção de direção. Balançou, rodopiou e veio com tudo de ré para o lado da valeta. Um pé conseguiu acertar a prancha, mas outro ficou perdido no espaço, e com isto fez o corpo dar um rodopio no ar, e se projetar de ponta cabeça no bueiro. Petrificados pensamos: - O filho de uma puta deve ter quebrado o pescoço! Momentos se seguiram de suspense, de angustia fúnebre até que fôssemos rápidos para resgatar das profundezas do bueiro o cadáver embebido de cachaça. Quase caímos de costa quando vimos o desgraçado, todo enlameado, surgindo como um monstro fantasmagórico do fundo do buraco, e ao nos avistar dizer de boca mole: - Nunca viram um bêbado cair num buraco? Com certeza o anjo tinha retornado à tempo! por: MARIO DOS SANTOS LIMA