sábado, 17 de novembro de 2012

UM BÊBADO FANTASMA

Eu acho que ainda hoje eu ouço com nitidez a voz rouca dele me chamando. São Mateus naquela época não tinha energia nas casas e muito menos tinha iluminação pública. Eu acredito que naquela tempo no povoado não havia mais do que de três mil almas. Eu acomodei meu esqueleto lá por muito tempo. Eu tinha medo de fantasmas, mas nunca acreditei neles. Tinha medo de bêbados porque os achava inconseqüentes. O certo era que sempre que podia evitava os cachaceiros, e os cantos escuros e de pouco movimento, isto somente por precaução. Lamentavelmente para chegar a casa de minha avó tinha que inevitavelmente palmilhar um longo trecho de ruelas habitadas apenas por vadios cachorros; A casa dela, lá no alto da rua, estilo europeu, onde fiquei por muito tempo, era nos arredores da cidade. Uma noite, depois de um sarau, voltava apreensivo para casa, de terço santificado e protetor na mão, quase cagando de medo nas calças. Seriam seis quadras que eu teria que vencer até chegar a casa de minha avó. A chuva ordinária fazia poças de água que eu, no meu andar apressado, pisava encharcando minha bota. A noite era terrivelmente escura e o silêncio caminhava nas pontas dos pés para evitar o barulho. Eu me guiava pelos relâmpagos que de vez em quando cuspiam chispas riscando o céu. Tudo me assustava. Queria rápido chegar em casa. A tensão era grande quando de repente, ali mais adiante, no riscar do relâmpago, vislumbro um vulto disforme amontoado na rua. Congelei, e com certeza pelo meu ânus não passaria nem pensamento. Quando resolvi retornar uma voz bêbada chamou pelo meu nome. - Será que estes malditos fantasmas tem agenda com os nomes de suas vítimas? pensei quase desfalecendo ao chão. Aquela coisa chamou de novo pedindo ajuda, e então percebi que não se tratava de um fantasma e sim de um bêbado que por certo me conhecia. Perdi o medo, e resolvi ajudar aquele miserável, até porque a inofensiva criatura estava completamente encharcada tanto por dentro quanto por fora. Acheguei-me até a ele, inclinei-me para ficar mais próximo, e com o brilho do relâmpago pude identificar que aquilo ali era o filho do casal de idosos, meus visinhos. Estava bêbado, sujo e completamente molhado. Fiquei com pena dele. Com dificuldade consegui colocá-lo de pé, passando seu braço esquerdo por cima do meu ombro segurando sua mão, e com meu braço direito segurei-o pela cintura. Lá fomos os dois, cambaleantes, molhados, sujos, tropicando e por duas vezes caindo no lamaçal. - Você é o único amigo que tenho! Com voz bêbada jogava elogios. Conhecia-o de vista, mas no trecho até chegar a casa dele me contou sua triste história. Bebia porque sua noiva tinha deixado dele por um outro qualquer. Dei alguns conselhos, mas pouco adiantou, pois o bêbado, pelo que me parece, é mouco e só tem boca para lamentar, dizer impropérios, e para ingerir o líquido. Entreguei a encomenda ao casal que muito triste e envergonhado me agradeceu. Aquilo passou a ser uma rotina quando de minhas caminhadas noturnas. Eu até ficava contente porque sabia que o meu protetor contra os fantasmas, embora bêbado, estava sempre por ali esperando por minha ajuda. Eu já não tinha mais medo de fantasmas quando andava a noite por aquele trecho. O bêbado deve ter um olho infra vermelho; Eu nunca o enxergava, mas quando me aproximava dele sua voz rouca, embaralhada, chamava pelo meu nome pedindo ajuda. Ele bebia todas que podia, e o combustível ingerido dava para ele chegar até ali apenas. Ele acabou se tornando um fiel amigo meu e eu o seu confessor. Um dia, como tantos outros, voltava de minhas noitadas. A noite fria e úmida vomitava um vento que ia morar cruel lá no miolo dos ossos. Não temia os fantasmas porque o meu amigo bêbado estaria, lá mais adiante, me esperando. Preparava mentalmente alguns conselhos para tentar convencê-lo a largar da bebida, melhorar de vida, e etc. Caminhava rápido guiado pelo instinto de direção. Cheguei e passei pelo local. Ninguém suplicou por mim. Parei e voltei. Procurei algum corpo estendido. Talvez o sono e a bebida tenha feito seu corpo adormecer. Gritei diversas vezes pelo seu nome, meus gritos ecoaram pelo espaço tendo como eco apenas alguns latidos distantes. Procurei em vão, e muito apreensivo rumei para casa pensando. - Talvez alguma alma boa tenha passado e o levado para casa. Antes de entrar em casa, percebi luzes de lampião e velas iluminando a casa de meus visinhos idosos. Alguma coisa me puxou até lá. A porta estava aberta. Entrei e vi o casal de velhos afagando os cabelos do meu amigo que inerte estava na mesa entre quatro velas. Ela me olhou, com lágrimas nos olhos, sem tirar suas mãos da cabeça do filho, disse: - Ele não saiu hoje, faleceu agora a noitinha. POR: MARIO DOS SANTOS LIMA

domingo, 11 de novembro de 2012

O AVIÃO SELVAGEM

Na história suja do contrabando podemos extrair muitas coisas que passeiam do hilário ao sepulcral, e da verdade insofismável a mentira quase aparente. Há muita verdade mentirosa, mas também há muita lenda verdadeira. O que vou descrever, não fosse presenciado por mim, jamais acreditaria se fosse contado por alguém. Você não vai acreditar? Não tem importância não, eu entendo. Apresento a Igreja, mas não digo a qual paróquia ela pertence. Era um lugarejo simples e bucólico, plantado e deslizando ao pé de uma pequena elevação, banhado pelo rio que solitário lhe fazia escorrendo e úmida companhia. O rio caudaloso surge por detrás da elevação e morre numa curva mais adiante. Entre o rio e a elevação, escondido do povoado, deitava comprido um tosco campo de aviação. As máquinas voadoras, que se aventuravam deslizar por este grotesco corredor de grama e terra, faziam antes um vôo de alerta, por cima do pequeno povoado, para que alguém fosse até lá espantar os famintos animais que devoravam a pista, e receber os visitantes. Isto acontecia lá de quando em quando, e quando acontecia era um diz que diz danado na cidade. Um dia o delegado da localidade recebeu um telegrama, através do correio, da polícia da capital no qual vinha uma informação de que havia indícios do uso da pista do aeroporto de forma criminosa; A pista estava servindo de entreposto da rota de contrabando. No telegrama era solicitado a averiguação e as providências cabíveis para coibir tal indecência. O delegado contratou um espião. Era um molecão, sem família, desempregado que tinha por objetivo ficar de tocaia, no alto da elevação para quando a máquina voadora chegasse fizesse as anotações da hora da chegada, prefixo e outros eventuais movimentos ao derredor. O moleque ficou plantado, dia e noite numa barraca só observando. A comida era ali trazida pela delegacia e suas necessidade físicas eram aliviadas nas moitas que por ali existiam. O pobre diabo permaneceu ali por quinze dias sem banho, cagando, mijando e comendo de forma cruel para o bem dos bons costumes. Convenhamos que era uma situação degradante para um espião. Finalmente a coisa iria acontecer. O espião ficou feliz e atento deixava momentaneamente a moita que ocupava. O dia já estava anunciando que iria descansar, quando no horizonte lá distante, um teco teco, deu umas voltas e desapareceu. Um carro chegou até a pista logo em seguida, e dois homens desceram e pareciam impacientes aguardando alguma coisa. O teco teco chegou, o carro se aproximou, e os dois mais o piloto travaram um rápido papo, entregaram alguma coisa ao piloto e descarregaram do avião algumas caixas colocando no carro. Imediatamente o avião levantou vôo e o carro pegou rumo da capital. Tudo fora anotado com propriedade pelo espião. O delegado telegrafou as informações para polícia da capital. Os dias transcorreram sem novidades até que um outro telegrama urgente dava todas as informações para o delegado armar uma emboscada e prender os contrabandistas. Discutiu-se o plano em segredo de estado, e armaram uma estratégia para a captura. O avião chegaria no meio da tarde. O assunto foi discutido em segredo, mas o delegado ficou sabendo que os malditos fofoqueiros já tinham se encarregado de divulgar a notícia. O povo estava se aprontando para a grande festa quando o delegado, de porta em porta, avisou: "Se alguém saísse de casa sairia preso". Ignorei a ordem e saí disfarçadamente e fui me esconder lá no alto para poder observar tudo. Os quatro policiais mais o delegado chegaram disfarçados de alface, ou de moita e rapidamente camuflaram a viatura. Ficaram amoitados, fortemente armados, impacientemente aguardando o contrabando chegar. Chegou um carro com dois indivíduos suspeitos. Nada poderia, por enquanto, se fazer visto que a ação criminosa ainda não estava em cena. O avião lá adiante apontou e iniciou o procedimento de aterrissagem. Eis que quando o avião já próximo de encostar o rodado na pista acontece alguma coisa mirabolante, indescritível, cretino mesmo. Eu acho que quando o piloto vislumbrou aquilo lá na pista prometeu ao deus dos contrabandos que iria abandonar esta vida de crime. O avião já estava preparado para suavemente aterrissar quando os quatro policiais e o delegado saindo das moitas, de arma em punho, no meio da pista, gritando voz de prisão. Eu acho que o avião era completamente surdo, pois não atendeu a ordem de prisão, batendo as asas em retirada quase matando os cinco policiais que tiveram que se jogar no chão para não serem atropelados. por: Mario dos Santos Lima

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

MEU PRIMEIRO LIVRO

Tudo o que acontece ou surge pela primeira vez em nossa vida fica indelevelmente marcado. É o primeiro beijo, a primeira namorada, a primeira vez, bem... Tudo fica registrado e lá de vez em quando recordamos e nos deliciamos com isto. O que me traz um gozo íntimo e suave é a lembrança do primeiro livro que ganhei. Tinha eu aproximadamente de seis para sete anos e a nossa família morava em uma casa, de parede e meio bem próximo de onde hoje se assenta a igreja matriz de Arapongas. Eu me encantava vendo, ao entardecer, logo após o jantar, meu pai desfolhar o jornal que ele recebia não sei de quem, mas que sempre era colocado por debaixo da porta da sala de casa. Ele me punha sentado em sua perna para eu ver e admirar a figura de um lindo cavalo que era reproduzido em tamanho quase total da página do jornal. Era uma propaganda impressa naquele jornal, mas para mim aquilo era real, e tinha o fascínio de me transportar para uma viagem a um mundo de fantasias. Eu ficava embebido na figura majestosa do animal ouvindo meu pai contar mil e umas maravilhosas histórias sobre o tal cavalo. Meu pai me envolvia no conto, e eu adorava isto. Estas histórias ficavam povoando na minha memória, e isto fazia com que eu sonhasse dia e noite cavalgando este belo animal. Nos meus devaneios o meu lindo alazão era parecido ao do jornal. Eu cavalgava sonhos e vencia barreiras. Meu alazão conversava numa conversação animada comigo, e nós riamos muito fazendo nossas traquinagens, nossas estripulias, correndo soltos pelo campo sem o compromisso com a realidade. Era meu amigo inseparável. Ainda bem que a nossa memória tem a capacidade de armazenar e evocar informações ao momento que desejamos. Este cavalo ainda está vivo em minhas recordações. Já não é um alazão novo e nem estamos por aí fazendo confusões, e nem mais eu mantenho um diálogo como dantes com ele, mas ainda lhe tenho grande estima. Às vezes sentamos nós dois, lado a lado e falamos recordando das coisas que fazíamos naqueles tempos. Ele relincha tristemente ao meu lado num relinchar saudoso, e eu lhe afago a cabeça. Um dia meu pai, ao entardecer chegou como sempre chegava, e logo após o jantar disse-me que tinha alguma coisa para me mostrar. Não pegou o jornal como de costume, mas trazia na mão um livro. Lembro-me que era bem colorido. Sentei na sua perna e ele leu, de cabo a rabo uma bonita história de um cavalo. Lembro-me ainda bem que em cada página tinha um potrinho e um menino em diversas situações empinando e correndo por belas paisagens, e logo abaixo das figuras algumas linhas escritas que por certo era de onde meu pai fazia a leitura. - Ah! Esta é a história de meu alazão, pensei acreditando ser verdadeira ao ouvir a leitura que meu pai fazia. A história era quase real. Narrava a vida de um cavalinho que nasceu numa fazenda e fez amizade com um menino e etc, etc e tal. - Sim, esta é a minha história com o meu alazão, pensei comigo. Eu me coloquei vivenciando as aventuras do personagem menino do livro. Meu pai terminou de ler a emocionante narrativa e me disse: - Amanhã vamos levar este livro para a biblioteca da escola. Você vai fazer uma doação dele. No momento fiquei p. da vida e perguntei: - Mas por quê? Ele é meu. - Não meu filho, o livro na biblioteca irá proporcionar e incentivar muita gente à leitura, e você vai ser o agente participando ativamente desta atividade configurada na doação deste livro. Muitos meninos vão poder ao lê-lo sentir as mesmas sensações, as mesmas emoções que você vivenciou e sentiu. - O livro é o invólucro do espírito transformado em caracteres e figuras, continuou ele para mim. Quanto mais pessoas abrirem e folhearem suas páginas, mais e mais vivo, e penetrante ele estará em outras mentes. Meu pai deve ter escrito alguma dedicatória na página inicial em meu nome; No dia seguinte lá fomos nós entrega-lo na escola. O meu primeiro livro tão rapidamente se foi como veio. Ele trazia a história de meu alazão num mundo imaginário. Entregando o livro, naquele momento, estava me sentido como um pai, num campo de concentração, vendo seu filho ser arrastado ao holocausto do banho, no forno a gás. Meu pai, segurando-me pela mão, e a passos largos se afastava cada vez mais da biblioteca. Experimentei olhar para trás, e lá estava ainda o livro no balcão da biblioteca, que sorriu e me deu um adeus com suas folhas em revoada. Uma lágrima correu sem vergonha pela minha face. Nunca mais vi o livro, mas guardo na memória a sua narrativa na voz de meu pai. por: Mario dos Santos Lima