domingo, 20 de outubro de 2013

TIRO DE SAL E PIMENTA NAS COSTAS.

- Você já experimentou colocar sal na ferida? Colocar pimenta no fiofó? Então, com certeza não imagina a dor filho de uma puta, que isto representa. Não imagino, nunca fiz, mas contaram-me isto. O campo de beisebol japonês achava-se próximo da primeira mata, não muito distante da cidade. Era chamada de primeira, porque este capão de mata virgem localizava-se um pouco antes do segundo capão, que ficava mais além. Bem, o campo de beisebol encontrava-se também tentadoramente próxima a uma chácara. Nesta chácara plantava-se cana para a fabricação de rapadura. Todo moleque gosta de mascar uma cana. No campo de beisebol era proibido, para a molecada, praticar futebol, da mesma forma que o chacareiro proibia a retirada de cana. Embora sob o protesto veemente do casal de japoneses, que morava ali a fim de cuidar do campo, a molecada, inclusive eu, sempre praticava as gostosas peladas. Da mesma forma que era terminantemente proibido a retirada de cana da chácara, mas a molecada roubava mesmo assim. Tudo que é proibido tem um sabor diferente. É mais tentador. Requer estratégia para a execução. Pelo que tenho lembrança do campo de beisebol, foram muitas correrias com ameaças, ditas em língua estranha, pelo casal de nipônicos. Do canavial, bem do canavial vou relatar agora. Quase sempre, em final de tarde, lá ia o bando, com bola debaixo do braço, para o campo de beisebol. A estratégia era, enquanto o menos fanático por esporte, tentava ganhar tempo, negociando com o casal nipônico, o restante, com um olho na negociação e outro na bola, jogava futebol naquele enorme campo. Uma vez que a negociação tinha chegado ao final sem o resultado pretendido, e com o negociador desesperadamente em fuga, a turma se punha em desembalada correria. Passavam pelo canavial, e tal qual um grupo destemido de combatentes, cada qual empunhando sua arma, desfilavam alegres de volta para casa com uma rama de cana de açúcar nos ombros. A coisa funcionava assim: Um guri ficava de vigia, só como observador, enquanto restante praticava o delito. Muito tempo a coisa funcionou bem - o vigia, num eminente perigo, dava o sinal, e a molecada saia, feito uns filhos de uma puta, correndo do canavial. Mas um dia... O desclassificado, o inconseqüente chacareiro, colocou de tocaia um jagunço armado com um espingarda de dois canos. O cerimonial aconteceu como sempre: - a molecada correndo do casal nipônico, mostrando a língua, abaixando os calções para mostrar a bunda, e fazendo o arrastão no canavial. Naquele dia o vigia não teve tempo de avisar. A emboscada estava pronta. Um tiro fez se ouvir, logo em seguida o outro. Muita correria, e a gritaria da molecada. Descarregada a arma o mal pago vendo aquela multidão de moleques gritando, assustou-se, e se escafedeu embrenhando-se no canavial. Lá de cima eu assisti tudo sem nada poder fazer. Moleques apavorados em fuga para um lado, e jagunço desesperado para outro. Na batalha, infelizmente houve duas baixas; Um moleque e a bola de capotão. O infeliz desvalido, todo mijado e cagado, gritando feito um condenado, era trazido carregado por dois companheiros. Tinha levado uma carga de sal grosso nas costas. A bola estraçalhada ficou para trás. Com uma bandeira branca, pedindo paz, pedindo trégua, levamos o ensangüentado gritão até a porta da casa do casal nipônico. A japonesa deixou de lado seu papel de fiel guardiã para assumir papel de mãe e enfermeira. Esfregou as costas do moleque com uma grossa escova, e com uma pinça de madeira, que mais tarde descobri que era o hashi, retirou, um a um, os grãos de sal encravados na pele do desesperado e ensangüentado moleque. Seus gritos, como uivos, até hoje ainda podem ser captados pelos potentes microfones da NASA. Não sei se a japonesa rezava, se esbravejava, se xingava ou reclamava, mas acabei entendendo que um tal de Buda, que gosta muito de cana e que não gosta de moleques e de futebol permitiu que o capeta atirasse. Diz a lenda que o jagunço ficou mais desesperado ainda quando descobriu que o moleque abatido era seu próprio filho, e que a bola pertencia ao filho do chacareiro. POR: MARIO DOS SANTOS LIMA

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

URUBU NO CINEMA

Estes animais empenados, que vivem soltos pelas alturas, chamados urubus, são feios e sujos, mas com muitos truques para sobreviver no seu dia dia. O urubu, por ser analfabeto de pai e mãe, e desajeitado, foi cruelmente descriminado pela fauna, e por isso, para se manter, anda virando os lixões e comendo carniça por aí. Para espantar os predadores, e se refrescar defeca e urina nas próprias pernas. Quando alguém tenta pegá-lo, santo deus dos céus! o filho de uma puta, para aliviar, expele o excedente da enfedorentada carga de carniça, que está no bucho, usando contra o inimigo como bomba de efeito moral. Um urubu bem emplumado, e com a carniça armazenada na moela, pesa mais de vinte quilos. Se você quiser ver um desses planadores nervoso e enlouquecido, coloque-o em uma gaiola. Aí, nessa situação, o seu grasnado é pior que música punk pancadão. A pacata cidade de Venceslau, lá pelos idos de cinqüenta, era pequena, mas não deixava de ter a molecada que gostava de aprontar umas e outras fazendo mil diabruras e molecagens. No meio deles tinha um, que em especial se sobrepunha pela esperteza, e cruel capacidade de aprontar poucas e boas. Vou chamá-lo aqui de Bagre, visto que hoje é pessoa de renome e imaculada figura na região. Qualquer coisa de sacanagem que acontecesse na cidade, sem erro de errar, o povo apontava para o Bagre. - Foi o Bagre! não vi, mas posso afiançar que foi ele. O tal de Bagre era terrível e implacável. Só não estava preso por falta de provas, e porque a molecada muitas vezes se aproveitava da fama dele para aprontar algumas também. O currículo do Bagre, no quesito sacanagem, era de causar inveja para qualquer Tom Sawyer ou pica pau. Se aconteceu alguma coisa de errado na cidade, não tinha erro, era senso comum: - foi o Bagre! e pronto. E o Bagre não deixava de se divertir com isso. Naquele sábado a primeira seção do cinema estava para iniciar. A fila do lado de fora, para a segunda seção, se perdia dobrando a quadra. O calor, dentro do cinema, de 40 graus era insuportável, e as madames com seus leques abertos ventilavam o rosto maquiado. O perfume abanado de mil essências parecia de uma floricultura. Foi dado o sinal e pontualmente as dezenove horas a seção teve início. Olhos atentos na tela, e mil mãos de casais apaixonados, se afagavam timidamente em caricias tantas. O filme era de suspense, e uma coisa estranha começou a fazer parte do espetáculo exatamente no delicioso momento em que cada um, na sua poltrona vendo o filme, tremia de medo, com o cu na mão. Foi assim que aconteceu. Durante a exibição do filme, de repente, como numa visão infernal de terror de final dos tempos, ouviu-se o som estranho dum punk gralhando desesperado, e imediatamente exalou-se pelo recinto um cheiro horrível de merda temperado com urina. O povo sem entender das modernidades dos filmes do seu tempo, imaginaram que fossem cenas reais acompanhando o filme. O plac plac cadenciado das asas pretas de enormes asas, mijando e cagando não só nas suas pernas, mas nas cabeças dos espectadores deu um toque maior de realismo. Mas quando a ave negra pôs prá fora o excesso de carga putrificada de suas entranhas é que o povo se deu conta da merda em que se encontravam. O enorme urubu venceu o espaço, que ia do banheiro a tela, em poucos segundos, o suficiente para fazer o maior estrago ao passar pelo público, e depois ao se chocar violentamente rasgando a tela de exibição do filme. O povo gritava desesperado com as narinas tampadas pelos dedos; Nem Dantes conseguiu tamanha clareza ao descrever o inferno como aquilo que aconteceu no cinema. Depois de algum tempo é que o dono do cinema se deu conta do que estava acontecendo. Trancou imediatamente todas as portas, acendeu as luzes e gritou pelo alto falante: - Bagre, você está fodido! a policia está aqui e vai te prender! Enquanto o povo em desespero se entreolhava na busca do filho de uma puta que fez aquilo, recebia descarga de mais urina e mais merda do urubu que desesperado sobrevoava procurando uma saída. - Bagre "têge" preso! não adianta se esconder seu vagabundo desordeiro! Enquanto a polícia gritava pelo nome do meliante, o fedor do ambiente aumenta, e franzinas mulheres fedidas desmaiavam aqui e acolá. O Tiro de Guerra veio para organizar a bagunça e definiu: - Primeiro as mulheres grávidas, os anciãos e por fim os marmanjos! Queriam por toda a lei finalmente pegar o Bagre. O Bagre realmente estava sem saída. Estava literalmente fodido. O urubu finalmente cansado, trombando novamente contra a tela, foi pego desacordado e levado pelos policiais para prestar esclarecimentos. E o calhorda desordeiro que aprontou a encrenca não tinha sido encontrado ainda. E a pergunta que todos faziam: - Onde está o Bagre? A fila indiana enorme era passada em revista. Por falta de tela a segunda seção foi cancelada. Depois de muito tempo, quando a última vítima cagada e fedida era passada em revista, as autoridades puderam realmente verificar que, vasculhando todo o ambiente, o Bagre se escafedeu. Decepcionados, tanto os donos do cine como a autoridades policiais, ficaram ao descobrir, ali mesmo na confusão, informados pelo chefe de estação de trem, que no dia anterior o Bagre tinha tomado o trem rumo a São Paulo. Como a norma jurídica tem como característica a generalidade, ou seja, é aplicada igualmente para todos, e não havendo o suposto transgressor humano, o delegado optou por prender o urubu por invasão de propriedade alheia e causar tumulto generalizado. Diz a lenda que ele morreu triste acorrentado. POR: MARIO DOS SANTOS LIMA

domingo, 6 de outubro de 2013

UM CORPO NO NECROTÉRIO

O defunto, meio morto meio atordoado, ainda teve forças para mostrar para mim, com o dedo da mão direita, um gesto obsceno. O necrotério sempre foi, e sempre será para mim, um lugar fúnebre, agourento; É um lugar de arrepiar os pelinhos do anus, pois ali jamais poderão ser realizadas festas, bacanais e outras coisas alegres da vida. Ali tudo é morto. É um lugar despido de qualquer coisa, não tem televisão, rádio, telefone, cadeiras, revistas para ler, nem um quadro, nada mesmo, a não ser uma mesa, de fria pedra, para deitar confortavelmente pelado o vivente que acabou de esticar a canela. É um lugar tétrico e mal cheiroso - cheira normalmente a formol. É um espaço que fica afastado, e pertence normalmente a um hospital. É um lugar que o cadáver, depois de sacrificado pela morte, espera a visita do legista e da polícia. O legista para constatar que realmente o dito cujo esticado se escafedeu desta vida, e a polícia, no caso do defunto estar vivo, prendê-lo por ele estar simulando a própria morte. Eu não tenho medo de fantasmas, de cemitério, de escuro, de boi tatá e outras fantasias e medonhas histórias que contam por aí, mas do maldito necrotério, este lugar sim, me dá calafrios. Este lugar faz mal para meu estômago e para minha vista. Não suporto ver um exibicionista cadáver despido, e muito menos chegar perto em carinhosas apalpadelas. Qualquer coisa morta causa-me repulsa, até mesmo o corpo sem vida de uma mosca. Pelos idos de um mil novecentos e sessenta e cinco São Mateus era uma pequena e pacata cidade do interior do Paraná. Poucos habitantes e poucas notícias. Numa madrugada fria de domingo o cadáver, de uma infeliz criatura acidentada, acabou, já sem vida, dando entrada no hospital, e levado direto ao necrotério para averiguações de praxe. Naquele dia, já bem cedo, meu sogro e eu, em visita de caridade aos enfermos, fomos guindados pelo enfermeiro para uma ajuda nada costumeira. Levou-nos até ao necrotério. - Estou sozinho e necessito de uma ajuda de vocês, disse-nos ele enquanto o seguíamos. Eu não conhecia e nem sabia que existia tal lugar, mas quando ele abriu a porta e vi um corpo, de avantajado tamanho, desnudo, ensangüentado, inerte na maca, só não desmaiei despencando ao chão porque me grudei no batente da porta. - Preciso que vocês me ajudem a colocar este corpo na mesa de pedra! falou calma e normalmente o enfermeiro como se aquilo fosse uma atividade simples e rotineira. Meu sogro imediatamente tomou a frente e ordenou: - Mario, você pega por debaixo da cabeça, eu pego por debaixo da bunda e o enfermeiro pega pelas pernas! Eu vi aquele filho de uma puta morto rindo para mim, com olhos em piscadelas dizendo: - Pega em mim seu cagão medroso! Fiquei petrificado fundido no piso. - Por que será que esta maldita cidade ainda não acordou? perguntava-me alucinado. Eu divaguei desesperado, congelado, com os pés preso no piso, olhando aquele corpo morto, mas que ria descaradamente de mim. Olhando aquele cafajeste defunto fazendo troça de mim, pedia ajuda dos céus: - Meu Deus, por favor acorde alguém e traga-o até aqui! Com certeza a população dormente, preguiçosa estava deixando escapar um grande acontecimento; - "Cadê as pessoas curiosas, apinhadas na porta do necrotério"? eu perscrutava incrédulo. -"Se este povo dorminhoco estivesse acordado não faltaria mão de obra fúnebre para esta logística necroterial". O medo e a fé fizeram com que continuasse a minha oração. - Meu Deus! Responda-me! por que não aparece nenhum filho de uma puta para transportar, da maca até a mesa, este corpo maldito sem vida? Por que? Em vão para o infinito céu eu gritei, mas Deus, por certo também estava dormindo ou com repulsa do morto, mas o certo mesmo, este deus queria é mesmo foder com minha tranqüilidade. O indecente peladão sem vida, parecia ler meus pensamentos, e arrogante, gozador, tripudiando gritava para mim: - Pega em mim seu covardão! Passe em meu corpo gelado sua mão quentinha! Vamos, venha! teu sogro está esperando! Meu sogro posicionado com a mão por debaixo da bunda do miserável defunto sinistramente ordena; - O que você está esperando, pega logo aí! Não tive outra saída, fiz uma careta de nojo para o morto, posicionando uma mão por debaixo da paleta fria do cadáver, e outra por debaixo da cabeça, deixando seu braço solto, caído por entre minhas pernas. Quando levantamos aquele corpo frio, mole feito uma gelatina, eu juro que vi, ouvi e senti, embora meu sogro rindo disse que não. Mas eu senti, sim eu senti primeiro estranhamente aquele braço frio roçando por entre minhas pernas, e daí senti que o filho de uma puta cadavérico tarado, amassando meus grãos, grudou no meu cacete; O maldito olhou cinicamente para mim, e em riso histérico disse: - Céus! que bofe gostoso! Vem comigo meu bem! Com aquele imbecil tarado, rindo em piscadelas, com seu braço frio no meio de minhas pernas, não tive outra alternativa que abortar a operação deixando-o pendurado nos braços do meu sogro. E lá fui eu, em desembalada correria, abandonando o imundo lugar, tentando limpar minhas mãos na calça. Arisquei uma olhadela parta trás, e vi meu sogro furioso tentando recolher o morto que acabou caindo ao chão. O defunto, meio morto meio atordoado, ainda teve forças para mostrar para mim, com o dedo da mão direita, um gesto obsceno. POR: MARIO DOS SANTOS LIMA